sexta-feira, 4 de maio de 2018

Na pele de Gilberto Gil



Imaginei um dia Gilberto Gil quebrando o silêncio da sua poesia para acudir desterrados que vagam aflitos em pedaços de chão demarcados pela intolerância: de pena e pergaminho nas mãos, o artista põe os olhos no mar e anuncia aos navegantes sem destino a sua oração de fé e compaixão. Finda a noite, há um manifesto aos refugiados de ontem e hoje, de carne e ócio:

Vamos refugir (o manifesto)

Refugiar-se é recolonizar a alma atormentada dentro desse hemisfério físico chamado vida. É expandir-se ao nada, ao porém de cada coisa rarefeita na fábrica do imaginário. É, ao grunhir, fundar outra voz simbólica uma oitava acima das jaulas no canto onomatopeico.

Refugiar-se é sair da sala de jantar para comer no quarto dos fundos das angústias humanas. É reatar-se com o silêncio luminoso das árvores e decifrar o sortilégio dos pajés que, na quietude das florestas, espiam os passos insolentes de Maduro.

É auscultar o fragor dos terreiros, nadar na contramão das águas engarrafadas pela manufatura pet, violar o sagrado acorde dos violões de catedral, reinventar Arembepe em cada quarteirão de Pacaraima.

Quantas vezes no exílio refugiei-me de mim mesmo, ali estatelado sob aquela constelação de murmúrios! Daquela atmosfera enfumaçada da Denmark Street eu, de atabaque nas mãos, transportava-me heroicamente para um beco moçambicano na Cidade da Bahia. Era o bálsamo benigno. Era o meu refúgio naquele átomo do instante.

Vamos refugir em mais redes estendidas na varanda, desmontar o tabu do poder, surfar em ondas mídias e frequências modulados de afeto. Vamos refugir da favela, como nas caravanas de Chico. Chegou a hora de cruzar a faixa de Gaza da dúvida. Porque SIM é NÃO. NÃO é NÀO? NÃO é também um SIM de viés. Ou NÃO, digamos assim!

É imperativo despachar para o longe céu as nuvens escurecidas que encobrem Venezuelas e Sírias.

Vamos nos refugiar os baianos nas caravelas de Porto Seguro; os cubanos, num quarto escuro de Boca Raton. Vamos nos refugiar os paulistas nas entrelinhas de Oswald de Andrade tremeluzindo esquinas de neon e luxúria. Vamos refugir do Rio sitiado por generais de fancaria.

Refugiar-se é também desencontrar-se das origens, perder-se na estrada pedregosa da Amazônia, no mar raivoso do Mediterrâneo. É espreguiçar-se no chão de uma rua que não se conhece. É dar outro destino ao ameríndio chocolate e mel. Aflições de todos nós. De todos os nós!

Que todo refugiado tenha direito à água limpa da fonte. Que antes de dormir coma o pão quente do sossego. E que doravante o refugiado, depois de se jogar no oceano das incertezas, tenha uma acolhida de cintilância no azul da nossa indiferença.

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