quinta-feira, 15 de março de 2018

Acerto de contas com o tempo



Que o leitor não julgue 50 tons de decisão (a ser lançado hoje, às 19h, na Livraria AMEI, no São Luís Shopping, com o selo da Clara Editora) apenas pelo traçado e a tintura da capa. Seria uma aventura precipitada. Não estão aqui confissões de uma adolescente atormentada com o florescimento da primeira penugem, com a ciranda de borboletas azuis que bamboleiam na primavera hormonal. O livro de Goreth Nogueira é o inventário de desejos de uma mulher que, aos 50, embaralha o próprio calendário solar: passeia dos 16 aos “60” sem perder o ritmo e o magnetismo de sua escritura escorreita.

Goreth Nogueira escreve como quem conta histórias numa roda de amigas, cada uma delas agarrada numa taça de tinto no bistrô, aqui e ali esparramando-se entre gargalhadas e lágrimas. Os textos de 50 tons de decisão são uma colheita de impressões sobre a vida, amigos, crenças, empoderamentos, amores que ficaram na poeira da estrada, futuros amantes, intolerâncias, amores servis, abusos prováveis, amores possíveis...

O leitor vai perceber que no fundo este é o livro de resenhas da alma, de subterrâneas aflições ou escancarados prazeres que se enfeixam no desvão da memória. No final do arco-íris de Goreth não há um pote de ouro. Nem de mágoas! Há uma caixa de sapatos cujo conteúdo inspira romper ciclos, mudar o itinerário, andar mais vezes descalço, inaugurar novas pegadas – ou “roer o pequi até dar no espinho”.

Nota-se que, ao escrever, Goreth Nogueira não sabe exatamente onde vai dar a palavra. As crônicas vão fluindo com liberdade insuspeitada, transgressora. Para ela, a relação do lápis com a palavra é quase uma cópula, de tão intensa e imprevisível. É a autora dona do gozo e do destino. A literatura precisa cada vez mais dessa simplicidade brejeira presente em temas tão mundanos e modernos. Só uma escrita arejada e fluente permite esse equilíbrio.

O leitor desavisado, aquele mesmo traído pela composição da capa, poderá sentir falta de um tal desfecho em algumas crônicas, um ponto final talvez. Mas não há ponto final. No departamento das coisas vividas de Goreth Nogueira só existe a bandeira de partida. Há poesia em pleno tumulto da prosa: “Um mundo sem palavras, escuro, não combina com a luz dos meus olhos...”. O resto são reticências de quem deseja a sorte de um amor tranquilo, porque de vez em quando amar é quase morrer.

Os 50 tons de decisão fluem da escuridão do cinema, dos livros roubados à luz da imaginação, das peças dispersas no palco da pauliceia, dos discos de Roberto Carlos, das escapulidas no meio da tarde de Catherine Deneuve, dos banhos de rio no Mearim, da fronde dos ipês roxos que colorem paisagens e amizades. Goreth coleciona frases de efeito que entre aspas adornam este seu primeiro buquê de inconfidências.

É um tanto Martha Medeiros, meio Leila Diniz, quase uma personagem de Malhação em franca explosão de TPM. É Jocasta e Narcisa. É Clarice no divã de uma segunda-feira chuvosa. É Rita Lee sem ritalina, a pílula da hiperatividade. Não precisa! Já nasceu ligada nos 220 volts. É psicoterápico o texto de Goreth Nogueira, a desinibida do Grajaú. É Nélson Rodrigues transgênero.

A menina carrega no bolso do colete uma espécie de bilhete de Caetano: “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. Profana e contrita, assim vai. O livro é um acerto de contas com o tempo: o passado, cuja fotografia pode enfim ser filtrada em photoshop; o presente, uma permanente metáfora de aniversário, inescapável; e o futuro, essa roda gigante sem freio. Como num parque de diversões, em 50 tons de decisão a esperança é mero sopro numa bolha de sabão.

A vida é tão cara. E começa agora. Exceda-se! Página por página.

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