sábado, 24 de março de 2018

O humor sem culpa de Dadá Coelho



Um dia a morena de pernas compridas, cabelos encaracolados, toda falante, de gestos largos, deixou o Piauí para trás e foi ter com o mundo. O mundo, claro, começaria pelo Maranhão, o vizinho mais próximo. Queria ser artista. Era ela um tanto verde, de Touro, mal conhecia a varanda da vida que dava para o quintal de Torquato Neto. Pouca leitura ainda na bolsa tiracolo, além de batom, moedas, humor em fase de quase explosão, um bloco de anotações fortuitas, preservativos e um pequeno dicionário inventado de palavras estranhas escrito por ela no calor de prosas improváveis.

Queria ser artista a irmã de Emmemeirejanes. E foi! Anos 1990. Entrou para o curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão, em São Luís, depois seguiu pelos bastidores de produção da TV Mirante, afiliada da TV Globo. Continuou. Criou com Alex Palhano a revista Vanguarda e com Flávia Regina, a Parla, duas experiências editoriais que incendiaram a remota aldeia dos timbiras altivos.

Logo Darcimeire espalhou-se pela cidade, frequentou as melhores rodas (e, por sorte, as piores também!), insultou intelectuais candidatos a celebridade, flertou com o teatro e o cinema e virou Dadá Coelho, a personagem do mirabolante plano de ser artista. E feliz. Juntos ensaiamos alguns projetos. Dadá foi a responsável pela produção das capas mais criativas e ousadas do caderno Galera, uma publicação do jornal O Estado voltada para o público juvenil, sempre auxiliada pelo luxuoso olhar do fotógrafo Márcio Vasconcelos. Certa vez, numa entrevista despretensiosa, quebramos a sisudez de Ferreira Gullar e com ele caminhamos distraidamente pela avenida à beira-mar da cidade aprisionada no Poema sujo.

Foi nessa atmosfera de afeto e poesia que numa tarde de fevereiro daquele finalzinho dos anos noventa, para saudar o protagonismo e a onipresença de Dadá, alinhavei o Manifesto do Dadaísmo. A dona do cofo de argumentos havia enfim sido exposta como “a fina flor da cajuína, a gasolina de Floriano, a mais fêmea masculina”. Dadá, segundo o estatuto do Dadaísmo, já estava com a alma impregnada da alfazema maranhense. Em algum momento era “a coivara de Patativa, o tambor de Teté, a unha postiça de Alcione Nazaré”; noutro, “a moranga do Chico Noca ou a própria vulva no cuxá da Lenoca”.

Durante pouco mais de dez anos ela fez produção de moda, assinou colunas em jornais locais, conquistou admiradores, cativou desafetos, divertiu velhinhos do asilo de mendicidade onde homiziou-se por algum tempo (a convite da diretora, Leina Mara, outra irmã de nome não menos famoso)... Foi muita coisa a piauiense Dadá Coelho em São Luís. Só não foi prefeita da cidade – por falta de vocação para o ócio – e chofer de caminhão. Mas colecionou frases espalhadas pelos para-choques da estrada longa. Produziu ainda a novela Da cor do pecado, dançou reggae no Espaço Aberto, bebeu Cerma quente, fez quase sozinha uma filha, a Maria Antônia, e partiu.

Antes de embarcar pela primeira vez para o Rio, de carona num cargueiro da FAB, Dadá Coelho pensou alto, tirando os sapatos e batendo-os na fuselagem da aeronave: - Dessa terra não levarei nem o pó!, teria dito ela em mais uma de suas tiradas de humor. Claro que era apenas uma paródia à famosa frase de Carlota Joaquina, cheia de ressentimentos, ao deixar o Brasil em 1821 de volta a Portugal. Dadá Coelho conta que de São Luís só levou na bagagem coisas boas, inclusive a matéria-prima que na capital carioca iria pautar sua carreira de comediante, roteirista e atriz.

Algumas poucas portas abertas, outras tantas ainda no cadeado da cidade grande, uma filha para criar, o purgatório da beleza e do caos, conta de luz vencida, amores mal resolvidos, um tumulto de ideias e planos, terapia, tudo ao mesmo tempo. O começo no Rio não foi fácil. Mas havia humor nos poros, os amigos, o blog Tricortando, a pedra do Arpoador, os amigos dos amigos, a bicicleta, o ansiolítico, o desejo de ser artista, o humor novamente falando mais alto e a chance de fazer um primeiro espetáculo de stand up comedy. E fez!

Ali Dadá e as 40 Confissões foi ao teatro e deu a Dadá Coelho o passaporte para figurar como camelô de sexshop no badalado bloco Me Beija Que Eu Sou Cineasta. Virou quase uma musa das quartas-feiras de cinza do carnaval do Rio, com suas caricaturas sempre arrebatadoras.

Mas foi a entrevista ao programa de Jô Soares, na Globo, que, além de fazer o intrépido Bira cair da cadeira de tanto rir, ofereceu a Dadá Coelho a pista para o voo cego nesse céu de incertezas chamado estrelato. Foram três blocos de escracho e gargalhada que ainda hoje são replicados nas redes sociais. Logo em seguida ganhou um programa de humor e entrevista na Globo FM e enveredou pela criação de roteiros para TV e cinema. Depois vieram participações em novela e programas de Luciano Huck, Roberto Justus, Esquenta, Amor & Sexo, BBB e agora Que Maravilha, com o premiado chef Claude Troigros, no GNT.

Dadá Coelho volta agora a São Luís como a artista que um dia, ainda no sertão do Piauí, sonhou em ser. E retorna com o mesmo pó nos sapatos, na pele da espevitada manicure Celeste. O céu de Celeste, no espetáculo Corta!, não é o mesmo céu da menina de Floriano que nas tertúlias do Rio faz a alegria de gente como Luís Fernando Veríssimo, Fernanda Montenegro, Nelson Motta, Xico Sá e Selton Melo, só para citar alguns nomes. Sobre o azul lá de cima ela carrega um mantra na velha tiracolo: “Eu gostava de correr pelas beiradas da rua com os olhos no céu para ter a ilusão de que a lua é que corria”.

Mas Dadá também é a taurina Celeste na desobediência civil, na traquinagem, no talento para pensar diferente e não medir um palmo de consequência. Por onde passa, ela deixa um rumor. Humor é rumor! E Dadá Coelho sabe cortar. Não é de hoje.

quinta-feira, 22 de março de 2018

O banquete da prosa



Já nos devia há muito Elsior Cotinho o seu segundo livro, desde a estreia do romance Águas e ventos da vida e da morte, de 1981. Não que houvesse, nesse intervalo de trinta e tantos anos, um escritor encoleirado no fastio da literatura, no casulo da falta de inspiração. O hiato não o impediu de transpirar no exercício da palavra. Contador de histórias em tempo quase integral, Elsior Coutinho arou o tempo dessas mais de três décadas tecendo uma ruma de crônicas, grande parte delas reunidas em O polígamo e outras histórias, livro a ser lançado nesta quinta-feira com o selo da Clara Editora.

Como tantas foram as crônicas derramadas às semanas em jornais de São Luís, o desafio primeiro de Elsior Coutinho foi remexer velhos arquivos em busca de escritos dispersos. O segundo passo foi a seleção de textos e, por efeito, o sacrifício do corte de algumas crônicas de inestimável valor afetivo.

Em O polígamo e outras histórias está a essência da produção textual de Elsior Coutinho, escritor arejado na delimitação dos temas de sua prosa e na arte de discorrer com extrema elegância sobre temas aparentemente banais, como o rito das beatas, a farra dos beberrões, as lorotas de caçador e até certos delírios que ligeiramente nos remetem ao mítico Zé Limeira (como na crônica Da humana fauna). Em O Polígamo, texto que dá nome ao livro, Elsior deita e rola com os maneirismos do bom sujeito do mato, um delicioso tratado de tamanha simplicidade.

Elsior Coutinho forja a arquitetura de suas crônicas tanto na vivência de menino criado no interior – a sua Monte Alegre, como o próprio nome sugere, é a aldeia da fantasia e do riso - como nas experiências do homem maduro emparedado da cidade. Na maioria das situações narradas estão os “contos reais”, assim classificados pelo próprio autor.

A crônica de Elsior tem o livre toque do humor. Mesmo em temas mais austeros, como crise econômica, terceira idade ou furto de energia, distraidamente a narrativa segue o curso da leveza até alcançar a graça refinada.

Sem subterfúgios ou acrobacias semânticas, o conjunto de crônicas de O polígamo e outras histórias passeia pela originalidade. São temas imperecíveis, embora quase sempre pescados nas entrelinhas das gazetas do dia. Neste livro de personagens jocosos e bizarros, de bazófias de um quase sertão, sabiamente Elsior Coutinho retira também das modorras notícias uma atualidade quase intacta. Madura.

O banquete está servido, pois acabou o jejum.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Acerto de contas com o tempo



Que o leitor não julgue 50 tons de decisão (a ser lançado hoje, às 19h, na Livraria AMEI, no São Luís Shopping, com o selo da Clara Editora) apenas pelo traçado e a tintura da capa. Seria uma aventura precipitada. Não estão aqui confissões de uma adolescente atormentada com o florescimento da primeira penugem, com a ciranda de borboletas azuis que bamboleiam na primavera hormonal. O livro de Goreth Nogueira é o inventário de desejos de uma mulher que, aos 50, embaralha o próprio calendário solar: passeia dos 16 aos “60” sem perder o ritmo e o magnetismo de sua escritura escorreita.

Goreth Nogueira escreve como quem conta histórias numa roda de amigas, cada uma delas agarrada numa taça de tinto no bistrô, aqui e ali esparramando-se entre gargalhadas e lágrimas. Os textos de 50 tons de decisão são uma colheita de impressões sobre a vida, amigos, crenças, empoderamentos, amores que ficaram na poeira da estrada, futuros amantes, intolerâncias, amores servis, abusos prováveis, amores possíveis...

O leitor vai perceber que no fundo este é o livro de resenhas da alma, de subterrâneas aflições ou escancarados prazeres que se enfeixam no desvão da memória. No final do arco-íris de Goreth não há um pote de ouro. Nem de mágoas! Há uma caixa de sapatos cujo conteúdo inspira romper ciclos, mudar o itinerário, andar mais vezes descalço, inaugurar novas pegadas – ou “roer o pequi até dar no espinho”.

Nota-se que, ao escrever, Goreth Nogueira não sabe exatamente onde vai dar a palavra. As crônicas vão fluindo com liberdade insuspeitada, transgressora. Para ela, a relação do lápis com a palavra é quase uma cópula, de tão intensa e imprevisível. É a autora dona do gozo e do destino. A literatura precisa cada vez mais dessa simplicidade brejeira presente em temas tão mundanos e modernos. Só uma escrita arejada e fluente permite esse equilíbrio.

O leitor desavisado, aquele mesmo traído pela composição da capa, poderá sentir falta de um tal desfecho em algumas crônicas, um ponto final talvez. Mas não há ponto final. No departamento das coisas vividas de Goreth Nogueira só existe a bandeira de partida. Há poesia em pleno tumulto da prosa: “Um mundo sem palavras, escuro, não combina com a luz dos meus olhos...”. O resto são reticências de quem deseja a sorte de um amor tranquilo, porque de vez em quando amar é quase morrer.

Os 50 tons de decisão fluem da escuridão do cinema, dos livros roubados à luz da imaginação, das peças dispersas no palco da pauliceia, dos discos de Roberto Carlos, das escapulidas no meio da tarde de Catherine Deneuve, dos banhos de rio no Mearim, da fronde dos ipês roxos que colorem paisagens e amizades. Goreth coleciona frases de efeito que entre aspas adornam este seu primeiro buquê de inconfidências.

É um tanto Martha Medeiros, meio Leila Diniz, quase uma personagem de Malhação em franca explosão de TPM. É Jocasta e Narcisa. É Clarice no divã de uma segunda-feira chuvosa. É Rita Lee sem ritalina, a pílula da hiperatividade. Não precisa! Já nasceu ligada nos 220 volts. É psicoterápico o texto de Goreth Nogueira, a desinibida do Grajaú. É Nélson Rodrigues transgênero.

A menina carrega no bolso do colete uma espécie de bilhete de Caetano: “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. Profana e contrita, assim vai. O livro é um acerto de contas com o tempo: o passado, cuja fotografia pode enfim ser filtrada em photoshop; o presente, uma permanente metáfora de aniversário, inescapável; e o futuro, essa roda gigante sem freio. Como num parque de diversões, em 50 tons de decisão a esperança é mero sopro numa bolha de sabão.

A vida é tão cara. E começa agora. Exceda-se! Página por página.