sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Um desses sobreviventes



Em outubro de 1991, nos intervalos da oficina literária Anatomia do Conto, eu, Eduardo Júlio e Elício Pacífico batemos um longo papo com o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu na calçada de um desses bares da Praia Grande, no centro histórico de São Luís. Éramos jovens curiosos, aventureiros da esquina universitária, dispostos a esquadrinhar numa entrevista o abissal inventário do escritor irremediável.

Tamanha era a nossa intrepidez que estávamos ali os quatro, com a mesma estatura, a mesma ledice, a trocar livremente ideias na boca da noite, como velhos conhecidos numa mesa de pôquer. Sem apostas previsíveis, sem desconfiança na mexida das cartas.

Caio Fernando Abreu foi um escritor compulsivo e intenso. Deixou sua marca na literatura ao fazer opção por temas caros à juventude que tanto o inspirava: a dor, a solidão, a angústia, o sexo, o medo, a felicidade sorrateira, os amores tempestuosos, os tumultos internos, a morte à espreita. Trabalhou em jornais e revistas, escreveu crônicas, contos, peças e muitas cartas. Morou por uns tempos no sítio de Hilda Hilst no interior de São Paulo, passou uma temporada na Europa e venceu três edições do Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira. Faleceu em 25 de fevereiro de 1996.



Sobre viver a graça de ser cultuado no futuro por sua obra – como ocorre agora no ambiente improvável das redes sociais -, Caio Fernando Abreu apostava na indiferença. “Ser esquecido ou não ser esquecido, tanto faz. A posteridade é um tédio”, dizia.

A entrevista com Caio Fernando Abreu fora publicada na edição de fevereiro de 1992 na revista Impacto, dirigida por Raimundo Filho e à época editada por Geraldo Iensen. Em 20 de janeiro de 1996, um mês antes da morte do escritor, transcrevi a mesma entrevista no jornal O Estado do Maranhão.

Organizada por Telma Rêgo e Tereza Nascimento, a oficina Anatomia do Conto durou uma semana, numa das salas do mezanino do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho. Falamos de muitas coisas relacionadas à escrita, fizemos exercícios textuais, mergulhamos na leitura de obras de Machado de Assis, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles e Adélia Prado, e discutimos sobre a influência de certos autores, as armadilhas do estilo literário, o mercado editorial etc.

Participaram da oficina - além de Telma, Tereza, eu, Eduardo e Elício - Antônio Carlos Alvim, Antonio Almeida, Joaquim Haickel, Moisés Matias, Paulo Melo Souza, Marilda Mascarenhas, Luiz Inácio, Axel Brito, Raimundo Garrone, Jorge e Wilson Marques.

A viagem ao Maranhão serviu de alento a Caio Fernando Abreu, que já experimentava os primeiros problemas de saúde decorrentes da Aids. O escritor gaúcho ficou encantado por São Luís e se apaixonou definitivamente por Alcântara, onde passou três dias contemplando ruínas, devorando Noite sobre Alcântara e tentando encontrar-se com o passado na sombria rua da Amargura.



Antes mesmo de voltar a São Paulo, Caio Fernando Abreu escreveu a seguinte carta endereçada aos participantes da oficina Anatomia do Conto:

Ilha dos Amores,
1°. 11. 1991
Nos conhecemos há cinco dias, e eu tenho a sensação de que faz muito mais. Cinco anos. Cinco séculos.
Estar aqui – nesse tempo, e com vocês – foi exatamente o que eu precisava para ver melhor a luz do sol. Só contando a minha vida inteira (com todas as suas particularidades carentes) vocês compreenderiam a exatidão do que sinto. Na hora certa, com as pessoas certas.
Amei um por um. Caras e textos. Corpos e almas. Tenho certeza que ganhei muito mais do que vocês: fiquei mais largo.
Vastidão é tudo que persigo.
Volto menos esfarrapado, mais aquecido. Por dentro, por fora. O sol real, ah e o outro sol, mesmo suposto.
Que a gente não se perca (no sentido mais amplo).
Love love love – it’s all we need.
Caio F.


Abaixo, a íntegra da entrevista com um escritor sereno e ao mesmo tempo assombrado com o destino de sua geração, da qual ele dizia ser uma espécie de sobrevivente:

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, 43 anos, esteve em São Luís no mês de outubro para ministrar o curso Anatomia do Conto, organizado por Telma Rêgo e Tereza Nascimento e voltado para jovens universitários e amantes da literatura. Considerando por Lygia Fagundes Telles como o escritor das entranhas da paixão, Caio é autor de importantes livros da nova literatura brasileira, como Morangos mofados, Os Dragões não conhecem o paraíso e Triângulo das águas. Nesta entrevista ele nos fala de literatura, a experiência lisérgica dos anos 1960, a juventude atual e o universo criativo que funde tempo, memória e poesia.

Como foi o seu primeiro contato com a literatura?

Foi muito cedo. Minha mãe era professora, minha avó, também. Quando entrei para a escola, aos 6 anos, já sabia ler um pouco. A primeira coisa que fiz foi escrever uma historinha, antes mesmo de ler um livro. Além disso, eu desenhava, fazia histórias em quadrinhos e de lá pra cá não parei mais.

O que você lia na infância?

Disparado, lia Monteiro Lobato. Era minha grande paixão: lia, relia sem parar. Depois meu pai me deu uma coleção de aniversário de As mil e uma noites, que eu lia muito. Lia tudo o que caía nas mãos, mas de literatura mesmo só Monteiro Lobato e As mil e uma noites. Só um pouco depois é que fui conhecer a obra de Erico Veríssimo. Mas lia escondido, porque os meus pais consideravam [os livros de Veríssimo] muito fortes.

Essa leitura da infância tem algum reflexo no seu trabalho?

Acho que sim, com Monteiro Lobato, por meio dos livros que falam em mitologia grega, como Os doze trabalhos de Hércules e O Minotauro. Influenciou no que escrevo, no sentido de uma visão de mundo meio mítica, uma necessidade de sonho, de fantasia muito grande que certamente vem da infância.



Trace um panorama da sua geração.

É um pouco difícil [falar da minha geração], pois acho um tema complexo e bastante extenso. Mas sempre afirmo que sou de uma geração com uma memória política muito trágica. É uma geração que estava começando a compreender o mundo, quando o presidente Getúlio Vargas se suicidou. Essa é a minha memória mais antiga. Então, politicamente, nós transitamos do suicídio de Getúlio até esse desastre lamentável chamado Fernando Collor, passando pelo golpe militar de 1964 e, um pouco antes, pela construção de Brasília. Portanto é uma geração que sempre foi ameaçada: crise, inflação, violência, repressão. A gente não teve sossego até hoje. O Brasil é uma nação que vai dar certo e não dá, tudo regride, isto politicamente. Por outro lado, existencialmente, acho que a gente teve a sorte de passar pelo final dos anos 1960 e inicio dos 1970, que foi um período muito lindo, com a explosão hippie, a liberação sexual, a experiência lisérgica e todo aquele universo de paz e amor. Então no meio da sombra toda houve esse momento de luz que me alimenta até hoje. Fico muito gratificado quando vejo pessoas da minha geração felizes, livres, sorrindo, pois muitos morreram de overdose, muitos enlouqueceram, outros morreram de Aids. Mas os que sobreviveram – e acho que sou um desses sobreviventes – estão muito bem, muito fortes. Isso me faz um bem enorme. Uma pessoa que me faz muito bem encontrar e ver seu trabalho criativo é o Antônio Bivar - ou a Alice Ruiz, que é minha amiga. São pessoas muito bonitas, muito felizes.

Naqueles anos havia uma conexão literária entre vocês?

Não exatamente, pois uma das características da minha geração foi sempre viajar muito. Sempre fui muito viajante. Qualquer oportunidade de viajar não recuso porque faz parte do meu trabalho de escritor conhecer o maior número de lugares e de pessoas. O Bivar também é um viajante. Essas pessoas sempre foram muito espalhadas. Com o Bivar, trabalhei na revista A-Z. Então na época a gente tinha um contato maior, mas não era um contato literário. Com Alice Ruiz e Paulo Leminski, quando eu ia a Curitiba ficava na casa deles, mas era um contato humano. Na verdade, nunca fiz parte de grupos. No sentido literário, sempre fui muito solitário.

O consumismo exacerbado tende a deixar a juventude atual imbecilizada?

Imbecilizada não acho, de jeito nenhum. Os jovens que participam do meu curso de contos são exemplos suficientes de que isso não ocorre. Ao mesmo tempo, acho que a juventude sofreu muito com o regime militar, que proibiu muitas coisas, e quando vocês entraram para a escola a história do Brasil estava muito censurada, as pessoas não sabiam direito o que havia ocorrido. A televisão também atrapalhou um pouco, acho até que tem coisas boas nela, mas ela rouba um tempo precioso de leitura. Quando eu era criança e adolescente, como não havia televisão a gente lia muito à noite e ia muito ao cinema. Porém, o que de mais grave a juventude atual herdou está relacionado ao vírus da Aids. Lembro que na época da revolução hippie havia o sexo grupal, todo mundo transando com todo mundo. Isso seria impossível hoje em dia. Então acho que a juventude atual ficou impedida de ter prazer, porque a ideia do sexo ficou diretamente ligada à ideia de morte, ou seja, Eros e Tanatos juntos. Trepar atualmente é um risco de vida, algo que exige muitos cuidados. Isso bloqueia a expressão de afeto, da espontaneidade. Cria medo nas pessoas. Cria defesas. Enfim, sinto numa boa parte da juventude uma enorme ansiedade de informação.



Como você define o seu trabalho?

Acho que o meu trabalho está cada vez mais voltado para a ecologia do humano. A ecologia não se resume só à preservação do meio ambiente, à não poluição dos rios, dos mares, à derrubada de árvores. Isso é importantíssimo, claro, mas mais importante também é a preservação de certos valores da alma humana, a emoção, a capacidade de amar, a capacidade de sonhar. Acredito que meu trabalho está todo voltado para isso, que também é característico da minha geração, mas é maior, pois é uma preocupação de toda a raça humana com o futuro da humanidade. A gente não sabe o que vai acontecer no país e no planeta daqui a um ano, daqui a dez anos. O futuro é um buraco negro. Então tenho tentado escrever sobre a necessidade do sonho para que nós possamos nos manter vivos, basicamente isso.

Em um de seus livros, você conta que passa o dia inteiro lendo poesia, tentando encontrar uma saída do planeta, o mais urgente possível. Você já encontrou essa saída?

Não, não encontrei. Talvez a única forma de sair do planeta seja a viagem astral ou a viagem espacial [risos]. Como não sou astronauta e não domino a viagem astral, ainda não encontrei essa saída. Mas existe a saída, pela capacidade do sonho, da invenção.

Em tempos de crise econômica, como agora, as editoras estão investindo em novos autores?

Sinto muito ter que responder não. Realmente não estão investindo, por falta de crédito a uma nova geração que está surgindo e que é muito boa, que pode falar dos tempos contemporâneos. Sempre conto uma história que é bastante expressiva sobre esse problema. Na Bienal do Livro de São Paulo veio um rapaz da França encarregado por editoras francesas de descobrir autores brasileiros na faixa dos 20 a 30 anos para serem traduzidos no mercado editorial francês. Fiquei pensando, e não tinha. Telefonei para algumas pessoas, mas ninguém sabia. Fora Marcelo Rubens Paiva, que acho que já está com mais de 30 anos, não tinha mais ninguém. Não está havendo renovação por falta de crédito. Isso é muito grave.

Essa nova geração de novos escritores existe?

Existe, e tenho comprovado isso nessas oficinas de criação literária que tenho feito em São Paulo, Curitiba e aqui em São Luís. Sempre aparecem contistas e escritores na faixa dos 20 muito interessantes.

O poeta Paulo Leminski dizia que uma das principais barreiras da literatura brasileira é a própria língua portuguesa. Como você vê isso?

Não sei se a língua portuguesa atrapalha tanto quanto o fato de vivermos num país de terceiro mundo em galope acelerado pro quarto mundo, porque o processo de empobrecimento do Brasil está assustador. Então isso, sim, cria dificuldades. As pessoas têm um certo talento aos 20 anos, porém precisam trabalhar em banco ou fazer uma faculdade, se tornar engenheiro, professor ou jornalista, obter uma profissão que permita ter uma renda no final do mês, porque não é possível viver de literatura. Então, vamos sendo roubados por isso, pois os escritores começam a inventar tempo disponível nos feriados, à noite, e acho isso terrível. Quanto à língua portuguesa, considero uma língua linda, muito rica, mas certamente complicada, pois, se você escreve em espanhol, pode ser lido em toda a América Latina. Se você escreve em português, fica limitado ao Brasil, não chega aos outros países. Até mesmo em Portugal os livros brasileiros que são editados lá passam por modificação.

A juventude brasileira da década passada [anos 1980] leu muito Marcelo Rubens Paiva e agora está lendo Paulo Coelho. Há uma polêmica sobre esses dois autores, principalmente por parte da crítica. Como você vê esses dois autores?

Tenho a honra, a alegria de ser muito amigo de Paulo Coelho. Ele é uma grande pessoa. Acho que se você pensar que durante muito tempo ele foi grande amigo e letrista do Raul Seixas e depois da Rita Lee, isso já limpa a barra dele. Quanto ao Marcelo [Marcelo Rubens Paiva], fiz a revisão do primeiro livro dele, Feliz ano velho. Acho que não importa se os dois são grandes literatos ou não. O que importa é que o Marcelo é uma pessoa maravilhosa, gosto muito dele, pois conseguiu concentrar a vivência de uma geração inteira num livro, e continua escrevendo, estudando. Ele é muito esforçado, sério. Além do que ler Paulo Coelho e Marcelo Rubens Paiva é muito mais saudável que ler Sidney Sheldon, Harold Robbins, enfim, esses enlatados americanos que não têm nada a ver com a nossa realidade, com a nossa alma.

Qual a dica aos iniciantes para um bom trabalho literário?

Olha, o principal é não desistir. A gente só escreve escrevendo. Procurar ler muito e ter todo tipo de experiência, pois só assim vai poder se refletir no trabalho, espelhar na literatura, a vida.

Como você avalia o curso Anatomia do Conto em São Luís?

Fiquei muito feliz de ter encontrado um grupo tão cheio de talento. Acho que tive a oportunidade de detectar alguns bons poetas e alguns contistas promissores, com o perdão da palavra.

Uma ideia pra concluir a nossa conversa.

Uma ideia pra terminar? Ah, sempre lembro de uma frase da Leila Diniz que diz assim: “Viva, ame e não tenha medo”.

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