sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Quando tentamos despistar Sotero e a noite em que Zeca Baleiro desafiou Alceu Valença

A noite da Praia Grande pulsava com música, bares e movimentos culturais

Por Eduardo Júlio

A Praia Grande foi entregue restaurada no final de 1989. Foi o primeiro Centro Histórico reformado das capitais do Nordeste - antes do Pelourinho e do Recife Antigo. Quando a Praia Grande, que muitos insistem em chamar de Projeto Reviver (denominação dada pelo então governador Cafeteira para o projeto de restauração), foi entregue, a maioria dos prédios passou a abrigar repartições públicas ou bares e restaurantes. A vida por lá, portanto, era dividida entre a burocracia e o entretenimento.

Um dos bares era o Risco de Vida, de propriedade do jornalista Luiz Pedro, onde se apresentava, nas noites de quinta-feira, do ano de 1990, o então jovem cantor e compositor Mano Borges, acompanhado do percussionista paraense Luiz Cláudio. Os shows de Mano, naquela época, eram seguidos por um público fiel. Ele cantava músicas autorais e de compositores da MPB, principalmente Caetano Veloso. As suas apresentações no Risco de Vida varavam a madrugada e atraíam dezenas de universitários e intelectuais da cidade. Costumávamos sair da UFMA, depois das 18h, direto para o Risco de Vida. Na volta, cansei de penar na parada de ônibus ao lado do colega César Choairy, esperando o corujão do Calhau. Mas, aos 19 anos, desconforto não nos afeta.

Além dos shows de Mano Borges, o Risco de Vida foi palco, em 1990, de apresentações de Zeca Baleiro, antes de partir para São Paulo, e do gaúcho Vítor Ramil, que no período gozava de muito prestígio em São Luís, porque canções de seu disco “Tango” eram muito executadas na Universidade FM.

O referido bar ficava exatamente onde hoje funciona o sebo e livraria Poeme-se. Se não me engano, o Risco de Vida era um dos poucos estabelecimentos da Praia Grande que vendia chope. No atendimento, atuava Sotero, uma figura lúdica e enigmática, habitué da Praia Grande, querida por todos que frequentam ou frequentaram a área. Magrinho como um saddhu (asceta santo indiano), ele era conhecido por alguns moradores do Centro (Sotero mora na Rua da Saúde) pelo apelido de Ventania. Naquela época, além de trabalhar como garçom (já tinha passado pelo lendário Taipa, que chegou a ser administrado por Zé Maria Medeiros, idealizador de "A Vida é uma Festa"), era o maior criador de gatos persas de São Luís. Hoje, exerce a atividade de artesão, confeccionando coloridas bolsas de pano. Embora possua alma terna e zen, Sotero é bastante rígido nas suas convicções. Não come carne e todas as tardes, religiosamente, faz leituras de autores da melhor literatura mundial como Kafka, Sartre, Herman Hesse e Camus, sentado à beira-mar.
Sotero, um dos personagens marcantes da Praia Grande

Pois bem, certa noite de quinta-feira, eu estava no Risco de Vida na companhia do meu amigo e estudante de comunicação José Luiz Diniz – hoje, jornalista e servidor, como eu, de uma instituição pública. Diniz era conhecido por sua gentileza, inteligência, simplicidade e, principalmente, pelo rigor ético. No entanto, naquela disputada noite, depois de umas e outras, e de ter tentado pedir a conta por diversas vezes a Sotero, sem obter sucesso, ele, muito indignado, propôs que saíssemos sem pagar. Tomei um susto. Nunca esperei que Diniz fizesse tal proposta. E pior, não tive tempo de argumentar o contrário, pois ele foi logo se levantando da mesa com os livros na mão, dirigindo-se à porta de saída do bar, que, como já contei, lotava nas noites de quinta-feira. Fui atrás carregando a minha inseparável mochila. Quando demos os primeiros passos na rua, fomos surpreendidos por Sotero que, como um gato esguio, saltou à nossa frente, fechando o ângulo, e exigindo o pagamento da conta. Na época, reclamei com Diniz. Hoje, acho muita graça, pois, na verdade, foi divertido ter passado por essa.

DESAFIO

E as quintas-feiras do Risco de Vida eram tão apreciadas que, quando o bar fechou, Mano Borges resolveu fazer uma apresentação de despedida no bar Antigamente, que ficava na rua da Estrela e se distinguia do Risco de Vida por realizar som de barzinho ao ar livre. Então, nós fomos para a calçada do Antigamente conferir a performance de Mano sob as estrelas. Entretanto, naquela noite, ele seria ofuscado por Zeca Baleiro, ainda longe de se tornar famoso, apenas um talentoso compositor aguardando o momento de pôr o pé na estrada.

Enquanto Zeca Baleiro tinha sido convidado a subir no palco para dar uma canja, Alceu Valença passeava pela Praia Grande. O pernambucano observou o burburinho do Antigamente e parou. Daí, foi convidado a participar da apresentação, disputando um repente com Zeca Baleiro. Alceu estava em São Luís promovendo a campanha de Edison Lobão para governador e Zeca parecia revoltado por ele, um ídolo de todos, apoiar a campanha de um político conservador como Lobão. Por isso, no duelo, não perdoou Alceu, dando um banho de criatividade nas rimas e praticamente humilhando o rival com um texto contundente. Surpreso com a atuação de Zeca, o público vibrava a cada verso afiado do maranhense.

Há quem diga que o artista pernambucano não estava disposto a disputar nada. Outros afirmam que ele nem entendeu direito a provocação. O certo é que aquela noite marcou uma geração e pôs fim ao primeiro período da história da boemia da Praia Grande pós-restauro.

Este encontro inusitado é lembrado por muitos, inclusive por Zeca, que me confessou, em uma entrevista, que sempre teve curiosidade de saber se Alceu conseguia lembrar do episódio e relacioná-lo ao fato.
Eduardo Júlio e Axel Brito perambulando pelas ruas de Alcântara

2 comentários:

  1. Eu também estava lá

    Naquela noite Zeca Baleira estava meio ziriguidum, cantando as toadas intermináveis que fazia por andar cansado da vida de cantor de bar, onde as pessoas pouco ouvem o artista. Estava lá, na antigamente, todo Zeca trovador.
    Alceu Valença chegou com os amigos, após descer de mais um showmício de Castelo,sentou em uma mesa e lá ficou, bericando e observando, ouvindo o trovador.
    Naquela noite eu não fui no Risco de Vida, parei mesmo no antigamente. Zeca nem viu o Alceu; se viu não manifestou reação. Continuou com a mesma trova.
    Mano Borges apareceu, deu uma canja tentando impressionar Alceu, fez o elogio do fã e depois passou o banco para o Zeca, que retomou a trova, no mesmo tom, na mesma medida.
    Foi então que Alceu Valença levantou da mesa, sentou ao lado do Zeca e mandou um repente. Zeca respondeu, sem perder a pose. No início Alceu gostou da resposta e por algumas trovas o repente andou bem. Então Zeca começou a mandar bala. Ao que lembro, a trova começou a engrossar quando Zeca disse que um artista do povo não deveria promover o atraso. Alceu, mesmo sem entender, respondeu que o trovador não sabia o que estava falando, pois ainda não conhecia a fama. Não lembro bem as palavras, mas a resposta de Zeca foi devastadora. Desconcertado, Alceu Valença deu um jeito de sair do banquinho e escapuliu com sua turma sem dizer um até logo.
    Então o nosso Zeca Baleiro, sem perder o tom, mas sem esculachar com o trovador que perdeu a rima, deu uma boa canja para as poucas pessoas que assistiram o duelo de titãs, deixou um pouco as trovas e cantou algumas pérolas de seu já conhecido repertório, como Flor da Pele, entre outras.
    Tempos depois Zeca Baleiro tomou a estrada e ganhou o Brasil.

    Moisés Matias

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  2. Eu tava lá, meu caro Moisés. Acho que estávamos na mesma mesa. Lembro que Mano naquele tempo tinha um rolo com a Sammy, filha de Aziz, e muitas vezes a gente ia ouvir reggae no apartamento dela, na Ponta d'Areia.
    Alceu fez um monte de shows pro Lobão, candidato a governador, e Zeca ficou indignado com essa postura. O clima ficou inflamado, a rapaziada vibrando com as investidas de Zeca. Alceu saiu com o rabinho entre as pernas e Zeca saiu consagrado pela esquerda etílico-festiva, da qual este que vos fala era um entusiasta :-)

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