terça-feira, 29 de maio de 2012

O dia em que Eduardo Júlio recitou Piva na praça

O almanaque virtuoso do campus, da universidade que ajudamos a embalar o futuro, é carregado de prazerosas histórias, muitos personagens, situações comprometedoras, fatos embaraçosos e episódios divertidos. Eduardo Júlio é um desses personagens da época, que com o texto abaixo expõe a babel das passeatas de protesto, dos palavrões de ordem e dos discursos improváveis. Estamos dialogando com um passado não tão distante, espalhando por aí peças de um quebra-cabeça sem fim, metafórico, na esperança de pisar outra vez o chão da velha academia. Não estamos sós. Por enquanto somos eu, Alessandro Lamar, Marcelo Barros e agora Eduardo Júlio. E tenho recorrido eventualmente, na construção dos capítulos de “Amor sem revolução”, à memória (e ao acervo fotográfico) de alguns amigos, como Wal Oliveira, Márcio Jerry, Eri Castro, Dimas Salustiano e Ademar Danilo, Mas O Redemoinho (oredemoinho.blogspot.com) está de portas abertas para quem mais vier a se alistar. Leia. (Félix Alberto Lima)


O dia em que declamei Roberto Piva na Deodoro

Por Eduardo Júlio

A exemplo de vários jovens da minha geração, participei de diversas passeatas no final dos anos 80 e começo dos 90. Desde a inesquecível campanha de Lula (ainda radical) em 1989 até o impeachment de Collor em 1992, perdi a conta de quantas vezes caminhei pelas ruas do Centro de São Luís, entoando palavras de ordem, carregando bandeiras, sendo mais um na multidão.

Reivindicávamos um Brasil melhor e mais justo, coisa séria, mas havia um imenso prazer naquelas manifestações. Confesso, fui um militante hedonista. Afinal, naqueles tempos de profundo ócio criativo e poesia, estava a compartilhar a alegria, a descontração e o entusiasmo, que só existem no auge da juventude. E ninguém podia perder essa...

Eu, Eduardo Júlio, Moisés Matias, Elício Pacífico, Karina Macieira e Cadmiel Júnior num desses eventos universitários fora do eixo Itaqui-Bacanga

Além de tudo, o mundo estava em plena transformação com a abertura democrática na América Latina e a derrocada do comunismo na Europa Oriental. Na área da música pop, o rock ainda tinha muito fôlego, com a explosão do grunge nos ouvidos e mentes dos jovens do Ocidente.

Uma das passeatas da qual participei – acredito que ocorreu nos idos de 1992, talvez, inclusive, tenha sido a primeira do movimento Fora Collor na cidade (ainda sem os caras-pintadas) – saiu numa tarde do Campus do Bancanga até o Centro de São Luís. Uma pernada de cerca de quatro quilômetros debaixo do sol quente. Mas, naquele período da vida, tudo era motivo de festa e diversão e ninguém se intimidava ou desistia de participar.

Eu era estudante do curso de Comunicação Social da UFMA e naqueles dias mantinha um estreito laço com os colegas de Ciências Sociais, que por um triz não cursei. Estavam lá Cinthia, Eliane, Ana Cristina, Cláudio (meu grande amigo pernambucano, responsável por memoráveis festas em seu apartamento no Bequimão), Cleids (brutalmente assassinado recentemente) e Elício. Este último estudava Economia. No caminho, Darcimeire, a atual Dadá Coelho, uma das atuais celebridades do humor nacional, ainda desconhecida como estudante de Jornalismo, entrosava-se com os militantes de carteirinha, puxando o coro das palavras de ordem. Queria ter fotografado esta cena.

Foto de Eduardo Júlio tirada em Belém (PA) durante encontro de profissionais e estudantes de Ciências Sociais, com Ana Joana Coimbra e Cleids no primeiro plano

Mas o melhor para mim ainda estava por vir. Quando chegamos à Deodoro, depois de mais ou menos uma hora de caminhada, o militante do PT e estudante de Comunicação, Marlon Botão, convidou-me para participar dos discursos no palanque. Como já disse, não consigo recordar exatamente o que reivindicávamos naquela passeata, só lembro que aceitei subir por um único motivo: seria uma oportunidade de recitar o manifesto intitulado “Biles, bules e bolas”, que adorava e sabia decorado, um dos textos mais implacáveis do poeta maldito paulista Roberto Piva.

O problema é que Marlon acreditava que eu, um pretenso anarquista libertário - na época leitor de Leminski, Caio Fernando Abreu, Fernando Gabeira e Roberto Freire - representava em São Luís o movimento anarquista estudantil, cujos militantes “pintavam o sete” nos congressos da UNE. No entanto, quase nada tinha a ver com aquela causa articulada. Embora possa concordar com a maioria das propostas de anarquistas clássicos como Bakunin, Proudhon e Kropotkin, nunca fui, na prática, leitor deles. Ainda tentei explicar isso, mas Marlon insistiu e fui parar no palco. E aí recitei o manifesto de Roberto Piva para a multidão que ocupava uma parte da Deodoro. O texto diz assim:

Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento. A vida não pode sucumbir no torniquete da consciência. A vida explode sempre no mais além. Abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros. É preciso não ter medo de deixar irromper nossa alma fecal. Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, patrões, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito da juventude. Abaixo a segurança pública, quem precisa disso? Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a liberdade.

No palanque, estavam representantes do PT, do PCdoB e do PSB. Embaixo, uma imensa maioria de estudantes. Com o manifesto do Roberto Piva, eu ingenuamente esperava ser ovacionado por meus colegas universitários, como acontecia nas mesas dos bares que frequentava, mas o que vi foi uma multidão perplexa e silenciada, além de algumas poucas vaias. E ainda durante a minha explanação, o então líder do PCdoB no Maranhão, Marcos Kowarick, exclamou puto da vida: “Tira esse louco daí!!!”

O trecho “Abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros”, que tanto me fazia rir de felicidade, pelo que tem de deboche, rebeldia e subversão, foi demais para o ego da militância acadêmica. Acho que os colegas se sentiram ofendidos.

Desci do palanque meio atordoado e fui correndo, sem vergonha e sem culpa, para perto de meus colegas das Ciências Sociais. Depois, fomos tomar umas e ouvir muito rock' n’ roll (era tempo de “Nevermind” do Nirvana e de outros discos inesquecíveis da era grunge) no apartamento de Eliane, bem pertinho dali, na Vila Inah Rego.

No dia seguinte, soube que o meu discurso amorteceu a manifestação, que teria perdido parte do entusiasmo. E durante uma semana ainda topei com os colegas estudantes nos corredores da UFMA questionando aquilo que tinha declamado.

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