quarta-feira, 15 de junho de 2011

Testemunha da tortura – entrevista com o bispo Dom Xavier Gilles


FÉLIX ALBERTO LIMA
O Estado do Maranhão
16.06.1999

O bispo dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, do município de Viana (MA), a 240km de São Luís (MA), mostra-se inconformado com a nomeação do delegado João Batista Campelo para o comando da Polícia Federal. Dom Xavier Gilles é formado em Teologia e Filosofia na França, foi ordenado padre em 1962, na cidade de Le Mans, e chegou ao Maranhão em 1963. Em entrevista a “O Estado”, dom Xavier nega que tenha participado de guerrilhas na Argélia, quando serviu ao exército francês, e confirma as denúncias de tortura sofridas pelo ex-padre José Antônio de Magalhães Monteiro. “Estive preso com o padre Monteiro e pude ver as marcas e as escoriações deixadas pela Polícia Federal. O bispo afirma que só não chegou a ser torturado na prisão porque o então arcebispo de São Luís, dom João Mota, fez sérias advertências ao delegado da PF.

Como foi sua experiência na Argélia? Há alguma ligação sua com guerrilhas da Frente de Libertação, como o acusaram na época da ditadura?

Dom Xavier Gilles - Como todo mundo sabe, [aquele período] era a guerra de independência da Argélia. Havia a Frente de Libertação Nacional tentando conseguir a independência da Argélia. A França considerava aquele país como território nacional. Não tenho nenhuma participação em guerrilhas. Não é nada disso. Apenas a polícia federal me acusou de ter participado de centros de treinamento de guerrilhas com a Frente de Libertação Nacional da Argélia. Coisa absolutamente falsa, quando na verdade eu era do exército francês e não da FLN.

Como aconteceram as prisões sua e do ex-padre Monteiro?

Dom Xavier Gilles – Fomos nomeados, eu e o Monteiro, respectivamente, pároco e vigário paroquial, em Urbano Santos e São Benedito do Rio Preto. Chegamos juntos em maio de 1960. Começamos a fazer um trabalho de pregar a palavra de Deus, organizar as comunidades eclesiais. O trabalho era fazer a ligação entre o trabalho e a vida. E aí olhávamos para outros aspectos, como a situação agrária e a vida dos trabalhadores. Havia muita injustiça. Com as comunidades, denunciamos algumas injustiças. Refletíamos sob a luz do Evangelho essa realidade agrária.

Vocês dois foram acusados pela polícia de estarem envolvidos em atividades subversivas?

Dom Xavier Gilles – A fé, o testemunho e a mensagem de Jesus Cristo invertem os valores da sociedade. A sociedade se firma nos valores ter, poder e prazer. E Jesus disse: “Seja misericordioso, acolhe o teu irmão, liberta o pobre das cadeias da escravidão”. Havíamos recebido da igreja uma missão. Não havia, portanto, como parar uma missão recebida por nós sacerdotes só por medo.

Vocês receberam ameaças antes da prisão?

Dom Xavier Gilles – Um pouco. Por causa de problemas agrários no Maranhão. Muitas vezes, os verdadeiros proprietários de terra são expulsos por gente que trafica nos cartórios e até na justiça, que consegue títulos de propriedade que não deveria ter. Então, recebemos ameaças desses falsos proprietários de terra. Só não chegamos a ser ameaçados diretamente pela polícia.

O que exatamente associava o trabalho de vocês à subversão?

Dom Xavier Gilles – Não havia nada nas cartas que nos comprometesse como subversivos. Quando o padre Monteiro foi preso, por exemplo, levaram junto a escrivã Rosalina [Rosalina Costa Araújo], de Urbano Santos, sem razão nenhuma. Talvez apenas porque ela não era do mesmo lado político do pessoal que tinha feito as denúncias contra nós. E a Polícia Federal, sem verificar nada, prendeu essa escrivã, acusando-a de ser secretária da Paróquia. Vai perguntar por que, naquela época, o João Batista Campelo fazia isso, por que razão ele monta um processo sem sentido.

Qual a alegação da Polícia Federal para a sua prisão?

Dom Xavier Gilles – Éramos vigários juntos. A polícia invadiu a Casa Paroquial, o padre Monteiro foi trazido para São Luís e torturado. Rapidamente a polícia viu que não poderia acusar o padre Monteiro, que era vigário auxiliar, sem me acusar. Então foram atrás de mim. O arcebispo de São Luís, que era dom João Mota, foi falar comigo e disse que era preciso eu me entregar porque o processo do padre Monteiro estava bloqueado. Os motivos de minha prisão só fui saber algum tempo depois. Diziam que era por causa da Lei de Segurança Nacional.

Vocês dois ficaram presos na mesma cela?

Dom Xavier Gilles – Só depois de terminar o inquérito. Fomos, depois de terminar o inquérito na Polícia Federal, presos os dois no quartel da Polícia Militar, no atual Convento das Mercês. Foi o Campelo quem fez tudo. Era ele o delegado da Polícia Federal. Ele e o agente faziam as perguntas. Ficamos três semanas na mesma cela.

E com relação às torturas?

Dom Xavier Gilles - Eu não fui torturado. Mas o padre Monteiro foi torturado, sim. Vi tudo logo depois, as marcas, as escoriações e, principalmente, o laudo tanto dos médicos do Estado como do médico do arcebispado, que era o padre João Mohana. Os laudos provam as torturas. Cheguei a ser forçado a provar coisas sem nexo.

E por que só o padre Monteiro foi torturado?

Dom Xavier Gilles – O padre Monteiro foi preso 48 horas antes de mim. Foi trazido para São Luís, interrogado e torturado. A polícia percebeu que não podia acusar o padre Monteiro sem me acusar, pois eu era pároco dele. Tínhamos o mesmo escritório, a mesma biblioteca, as mesmas finanças. Então ele me prendeu. Quando me entreguei, fui acompanhado à polícia pelo arcebispo dom Mota. Ele, como já sabia das torturas ao padre Monteiro, disse à polícia que estava entregando o padre Xavier em bom estado físico e mental. Então, o delegado Campelo perguntou: “O que o senhor está querendo dizer?”. E dom Mota respondeu: “O senhor sabe muito bem o que estou querendo dizer”. Jornalistas, que muitas vezes criam coisas, inventaram na época que não fui torturado porque fui oficial do Exército. Mas nada disso. Não fui torturado porque as torturas ao padre Monteiro foram denunciadas rapidamente e o arcebispo reagiu. Foi graças à lucidez de dom Mota.

O delegado João Batista Campelo assumiu ontem o comando da Polícia Federal. Como o senhor avalia essa nomeação diante das acusações de tortura?

Dom Xavier Gilles – Fico profundamente triste com a nomeação de um homem com o passado como o dele. Num momento como este, mais do que nunca o País precisa de uma Polícia Federal honesta. Fico chocado, mas não posso fazer absolutamente nada. Os testemunhos de um ex-padre e professor de universidade e de um bispozinho lá do interior do Maranhão, para o presidente da República isso e nada são a mesma coisa. Antes de nomear, o presidente já sabia disso tudo e nomeou João Batista Campelo assim mesmo. O próprio presidente, que foi perseguido pelo regime militar, nomeia quem o teria torturado se ele tivesse preso.

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