domingo, 29 de agosto de 2010

Buenos Aires pós-Cortázar


O velho corcunda empunha o bandoneon surrado e entoa a melodia lamentosa do tango. Adiante um homem de meia idade desafina um verso triste no violão e canta em coro com o menino desconfiado e terno. Ouvem-se vozes em castelhano, francês, português, inglês etc. No passeio público do cone sul, o homem sem cabeça não esmorece no sonho vão da invisibilidade.

O casal rodopia nos passos do tango ao relento. Rapidamente se forma a plateia de turistas curiosos e transeuntes embasbacados. Cadenciado jogo de pernas, olhar fixo no parceiro, dama e cavalheiro se entrelaçam nas quadras de Piazzolla. Mão no quadril, o terno conduz o vestido submisso sobre o calçadão da fama passageira. Palmas estimulam a coreografia dos dançarinos, mas não enchem o chapéu que corre de mão em mão.

Alguém desenha em minutos a caricatura graciosa, enquanto o aventureiro da voz inicia o show cantando qualquer cover como se estivesse em qualquer rua. Há música em profusão. Atos de melodrama a granel. Quase dois graus abaixo de zero e não demora muito o altofalante da esquina sopra ao vento Morango do Nordeste. O cantor esforçado não disfarça o sotaque.

Uma sessentona desinibida com adereço de esfinge na cabeça aborda os passantes com o cartão de visita do sex shop. Improvável não decifrar endereço tão quente! Já é noite e noutra esquina a carne feminina está na mão de atravessadores igualmente desinibidos. Meninas flauteiam resignadamente pelas transversais à espera da sorte no jogo do amor.

A rua tem o cheiro forte de cacau e incenso. Estamos na Florida, o coração de Buenos Aires. Meio shopping, meio rua Grande. A via inteira é um teatro. E como que num espetáculo diário a céu aberto, ali todos estão em busca do aplauso que se materializa na plata.

A Argentina cabe na rua Florida. Turistas e portenhos se esbarram em meio ao mimetismo diário de dólar, euro, peso e real. Vendedores ambulantes armam suas esteiras e quiosques de quinquilharias. Dividem a atenção com o colorido das grandes lojas e galerias de marca. Mas não ousam roubar o charme das infinitas livrarias.

A moeda é frágil e a economia enfrenta solavancos rotineiros. Trabalhadores armam acampamento na Praça de Mayo. Ao fundo, a Casa Rosada descolore ante a paisagem do protesto. O governo coleciona reveses enquanto o colega Nestor retoca a maquiagem de Cristina. A bandeira do palácio tremula no azul celeste do tecido quase roto. Quase feliz, o povo não cala.

A Argentina tem o seu encanto. Natural, cultural. É um belo passeio. Das montanhas de neve no cenário glacial da Patagônia aos contos cortantes de Julio Cortázar. Da Recoleta ao Caminito, do Boca a Palermo caminha-se distraído pelos labirintos lógicos de Jorge Luis Borges.

Os argentinos são autossuficientes e, a rigor, esbanjam vaidade e imodéstia. Continuarão amando o Maradona gordo, debochado. Reinventam-se elegantemente na derrota. O perdedor de ontem é um herói nacional. O futebol é só um pretexto. Há muito a nação está nua no obelisco.

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