quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O diálogo da sustentabilidade: comunicação para empreendimentos de grande impacto


Os processos de comunicação empresarial tendem a acompanhar, naturalmente, modelos e estágios da economia. Crises, mudanças de rota, desaceleração, picos de desenvolvimento, tudo isso entra na pauta das agências de comunicação conectadas com o mundo dos negócios. Monitorar as curvas de investimentos e os indicadores do mercado é uma tendência cristalina da comunicação de resultados. Os projetos estruturantes que estão em curso no Brasil, por exemplo, fizeram emergir a expertise da comunicação especializada em estratégias para empreendimentos de grande impacto.

Apesar do hiato provocado pela atual crise econômica, há centenas de empreendimentos industriais em construção nas cinco regiões do País. São refinarias, siderúrgicas, rodovias, ferrovias, mineradoras, complexos portuários, usinas hidrelétricas e termelétricas, linhas de transmissão etc. Esses projetos indicam primeiramente que há uma escala de crescimento com uma janela de oportunidades para variados segmentos da sociedade, principalmente a massa de trabalhadores desempregados. Revelam também a necessidade de mais energia e novos modais de escoamento da produção para suprir a tendência do desenvolvimento econômico brasileiro.

Mas os impactos desses empreendimentos não estão apenas no campo econômico. Uma grande obra de infraestrutura requer planejamento rigoroso capaz de minimizar as interferências na vida das pessoas e do meio ambiente. Para isso, existem os estudos e relatórios de impacto ambiental que devem ser apresentados pelos empreendedores, obrigatoriamente, nas fases de planejamento, construção e operação do empreendimento. São esses instrumentos que formalizam, como prevê a legislação, o compromisso da empresa com políticas de mitigação e compensação social em relação às comunidades e populações interferidas.

Os relatórios e estudos de impacto ambiental (EIA-RIMA) são apresentados em audiência pública, fórum legítimo para discussão dos pontos de interesse do empreendedor e das demais partes envolvidas (comunidades, poder público, sociedade civil etc.). O papel da agência de comunicação é criar condições adequadas para que a audiência seja bem sucedida, no que tange a organização, logística, convocação e mobilização popular, registro e documentação completa do evento para posterior comprovação junto ao órgão ambiental de licenciamento. Outra atividade relevante de uma agência com expertise nessa área é a organização de reuniões preparatórias que antecedem a audiência pública. Essas reuniões visam estimular, de forma didática, o debate prévio com públicos específicos, o que resulta numa audiência muito mais profícua.

Dentre os compromissos socioambientais do empreendedor impostos pelo órgão de licenciamento está a execução de um programa de comunicação social, instrumento legal de médio a longo prazos que permite o acompanhamento, pelas partes interessadas, de todos os passos da obra, as interferências na comunidade e o andamento dos demais programas de compensação.

O programa de comunicação social é o canal de diálogo da sustentabilidade. É por meio dele que a comunidade aplaca os seus anseios, tira dúvidas, informa-se, apresenta sugestões e é ouvida. O programa é de lei, não uma conveniência ou concessão da diretoria da empresa/empreendimento. E por isso mesmo, os resultados são acompanhados regularmente para aferição de sua eficácia. De tamanha responsabilidade, a execução do programa é prerrogativa de agência de comunicação com experiência nesse tipo de atividade. Cabe somente a uma agência especializada promover a mobilização social na área de influência do empreendimento - que é a comunicação face a face, o diálogo com gente simples, lideranças comunitárias, políticas e religiosas.

A comunicação para empreendimentos de grande impacto exige técnica e conhecimento da realidade social e cultural da região onde o projeto está inserido. Em áreas carentes desse imenso Brasil – por onde se multiplicam obras do PAC e da iniciativa privada – mais do que internet, anúncio de jornal e propaganda em TV, as comunidades necessitam de ferramentas simples de apoio. Na maioria das vezes, são cartilhas, pequenos informativos, panfletos, rádios comunitárias, carros de som, faixas de rua e reuniões ao ar livre que fazem a diferença.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Olhar azul anil sobre a ilha


A cidade está ao alcance das mãos, debaixo dos olhos e pulsando no peito. De braços abertos para o continente, presa a um corredor estreito, sem forças para se lançar ao mar. O oceano olha e molha suavemente o ventre da pequena. Quem é ela, essa menina de quase quatrocentos setembros? Capital antiga de empreendimentos equinociais mal resolvidos, São Luís tem cheiro, cor, jeito, estilo... Há crença e herança cultural por ruas, vielas e becos. Tem catuaba, ginga e o acentuado sabor da juçara. Poesia a granel embrulhada em pacotilhas de porcelana. Quando cai doente, a cidade toma chá de cabacinha. São Luís ardente é lilás como a água quente da tiquira.

Ah, francesa brejeira vestida de chita e cheirando a loção da lagoa onde nem o sapo lava o pé porque não quer! Província do mar das águas barrentas e dos boqueirões de mercadores de minério. São Luís é a belle époque sem memória e sem retoque. É a nova Lisboa de azulejo sem Tejo, dos mascates da auto-ajuda, dos profetas da praça e do chiado, do cearense rendeiro. Vasto terreiro de refino da bacaba, à beira do precipício do petróleo.

São Luís é mercante. A cidade operária acorda às cinco da manhã e vela o futuro que acena do convés dos navios enfileirados na baía. Um dia o progresso virá com armadura de ferro ou de alumínio! O caminho da boiada é a tua bolsa de valores. De dia, a rua Grande vai às compras. A cidade pechincha no camelô da esquina, nos armazéns de secos e molhados do João Paulo, no shopping de grife e na feira. À noite, a cidade vende o corpo no varejo pelo porto. A madrugada acende o pavio regueiro para a dança ao pé dos paredões de radiola. Alegre navio negreiro.

Chuva e sol, terra e mar, postal e lama, templo e bar. Um par de muitas coisas. Remake da colonização. São Luís é uma ilha de edição do passado, a ervilha da fantasia de torres e estacas fincadas na península do futuro. Dama do céu revolto, do escuro da noite, dos ventos gerais e da brisa morna, ela abriga delicadamente os maçaricos transcontinentais. É debaixo do mesmo céu que, no azul do dia, flanam borboletas amarelas pelas avenidas e bailam pardais distraídos pelo litoral.

Marginal, São Luís neguinha é uma aldeia global. África na cor, França na vocação, Holanda na coluna social, Jamaica no salão, Portugal de fachada, Atenas na intenção, índia seminua no São João. A cidade subverte a ordem. Se dorme na rua do Passeio, sem antes passar pela rua da Paz, pode acordar por um triz na Praça da Saudade. Em tempos de chuva, teme com razão o pequeno quarteirão de distância que separa a rua do Sol da rua dos Afogados.

São Luís é o quebra-queixo com hífen, açúcar e afeto na calçada do Caiçara - sem paraquedas, hífen e rede de proteção para suicidas recidivos. É o canto melancólico dos pregoeiros de cuscuz e caranguejo. É o sorvete na vasilha. São os muros de Emílio Ayoub e as escrituras sob a presilha dos cartórios.

A cidade é temperada pelas mãos do tempo. Mesa posta ao pecado, do creme de bacuri, da Lenoca e do cuxá. Do catamarã e do banzeiro, dos crentes aos maconheiros. São Luís de todo mundo, da pinga do Nauro Machado, dos poetas e dos baleiros.

Da cruz de malta que não falta nos ombros da tua gente.

Capital dos rios de água e sal, a cidade é de ninguém. Dos cambistas do Hotel Central, dos turistas de Teresina e de Belém. São Luís das praças que perderam a sombra, dos meninos de rua companheiros de miséria e lombra. Das quengas de faculdade. Das migalhas da filantropia. Dos mangues, do faz-de-conta da economia. Da serpente, da lenda e do bolo fecal no ventilador. Dos sotaques de cantador, de Chagas, Humberto e Chiador. Da Madre Deus, do tambor e da Maioba. Da Joana da Sé, dos insanos da colônia, da Marrom e da Pindoba.

É só uma questão de fé. Qualquer dia desses São Luís também vai dar no pé.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Waly Salomão: uivos de uma fera faiscante

A entrevista postada abaixo foi publicada em 1996 no jornal O Estado do Maranhão. Waly Salomão era o verborrágico e estridente interlocutor daquela noite de junho. São Luís era São João. A cidade, uma fogueira colorida de centelhas. Waly, um ser humano em ebulição em plena Praia Grande.

Os casarões e as mesas de bares exibiam tons inebriados da lua azul. Começamos a entrevista beirando aquela atmosfera cintilante da cidade. Era o primeiro mergulho do baiano de Jequié nas águas turvas de São Marcos. Falou de poesia, produções culturais e de sua herança cultural árabe. Contou de suas paixões pela negra melodia do reggae e falou do fascínio pela trajetória de Alcione. Para a interpretação de Maria Bethânia ele compôs A voz de uma pessoa vitoriosa, um inventário de amor aos altos e baixos enfrentados pela cantora maranhense no início de carreira, no Rio.

Ficou impressionado com o que viu e ouviu no Maranhão: o Teatro Arthur Azevedo e suas óperas bicudianas, as umbigadas no tambor de crioula, o Boi de Leonardo e o terreiro de São Pedro.

Ainda estive com Waly em Brasília em março de 2003. Burocraticamente instalado num dos gabinetes mais frequentados no sexto andar do Ministério da Cultura, Waly Salomão parecia entusiasmado com a missão de chefiar, a convite do então ministro Gilberto Gil, a Secretaria Nacional do Livro e da Leitura. A minha missão, além de rever o amigo, foi entregar os originais do livro inédito de poesia de Fernando Abreu (O umbigo do mudo, depois lançado pela Clara Editora) para que Waly escrevesse o prefácio. Não só recebeu a ideia com satisfação como telefonou para o poeta maranhense.


- Meu caro Fabreu, continue fabricando a sua bela poesia que eu estarei em abril em São Luís.

Ele escreveria o prefácio na viagem. Na verdade, um pretexto para voltar ao Maranhão. Telefonou logo para o amigo poeta Antônio Cícero convidando-o para fazer, juntos, um recital em São Luís. “Quero voltar à base da Lenoca para comer uma torta de camarão com arroz de cuxá”.

Não houve o cuxá, o prefácio minguou. Waly Salomão morreu no dia 5 de maio de 2003. Antônio Cícero adiou ou planos. Onde está Waly? Fazendo algaravias no telhado da sorte. Talvez inventando livros, negociando ciganos. Quem sabe passando uma lábia no jardineiro. Sabe lá!

domingo, 9 de agosto de 2009

Uivos de uma fera faiscante

Na última quarta-feira, o Rio de Janeiro recebia de braços abertos o lançamento do segundo número da revista O Carioca, uma publicação bimestral voltada para a arte e a cultura. A publicação, editada nas oficinas do Jornal do Brasil pelos poetas e compositores Waly Salomão, Chacal e Bernardo Vilhena, tem despertado o interesse de artistas e afins pelo resgate do espírito vanguardista que marcou os anos 1970, e também pelo mergulho na atmosfera cyber-pop dos anos 1990. Os três nomes, como diria Waly, estão “saindo das catacumbas para entrar nas catedrais” do redemoinho cultural dos dias de hoje.


Waly Salomão, a convite de Alcione Nazareth, passou os últimos dias das festas de São João em São Luís e ficou encantado com o caldeirão de ritmos e estilos da nossa cultura. Noite de São Pedro. Lua cheia e azul sobre a Praia Grande - ambiente da entrevista. Alumbramento: “Essa é a última lua cheia com a qualidade azul do milênio. Uma blue moon (como na canção de Dylan) que só vai ter de novo por volta do ano 2053. Uma lua cheia e azul sobre a maré e os casarios farta qualquer coração. É o contrário de um infarto, porque torna o coração repleto”.

Waly Dias Salomão nasceu em Jequié, no sudoeste baiano, e ainda cedo se iniciou, voluntariamente pela contramão, no ramo de letrista de música popular, poeta e diretor de shows. Participou de revistas como Caspa, Muda, Código e Ímã, colaborou com o Pasquim e foi um dos editores da Navilouca. Em 1972 lançou o livro Me segura que eu vou dar um troço e Armarinho de Miudezas, em 1993. Qual é o Parangolé, sobre Hélio Oiticica, e Algaravias (poesias em estilhaço) são livros recém-lançados pelo baiano. Waly, na opinião de Antônio Risério (outro baiano a mil), é um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado de beletristas seriosos e cinzentos. “A primeira bebida que tomei na cidade de São Luís foi o guaraná Jesus. E uma cidade que toma um Jesus gelado e cor-de-rosa só pode ser um lugar sagrado e feliz”. Nesta entrevista, Waly fala de peito aberto, com o auxílio luxuoso de seu sorriso largo, como um “moderno e eterno kamikase mouro”.

Para um baiano sem laço, qual é a bossa do Maranhão?

Desde que cheguei a São Luís sinto-me em casa, como se eu também fosse um membro da tribo, um componente da escola. Vejo tantos traços de identidade entre o jeito baiano e o jeito do maranhense... Vim assistir à ópera Catirina, uma montagem fecunda que abre um filão muito interessante e que não é a transposição mecânica do folclore. É uma reelaboração do folclore. Quando fui entrevistado na porta do Teatro Arthur Azevedo pelo programa Caderno Dois, da TVE, sobre a expectativa em relação à ópera, tive um ato falho luminoso. Com menos de 24 horas na cidade já falava pra câmera o seguinte:

- Nós, maranhenses e brasileiros...

E não dava pra corrigir. Ou seja, meu inconsciente já me dava indícios de que eu estava em casa, me sentindo muito bem. Chegamos de viagem de madrugada - eu, Alcione Nazareth, Luís de Freitas e Rosamaria Murtinho - e fomos direto para a Igreja de São Pedro, na Madre de Deus. E aí já comecei a ver o Boi de Leonardo e todas as diferentes manifestações. Ficamos até o dia clarear no meio daquela festa, na fascinação total.

Tinha estado aqui em São Luís há muitos e muitos anos num festival de música popular, quando fui convidado para fazer parte do júri. Mas era uma época tão diferente... Foi ainda na década de 1970. Então, agora é que tive o impacto de estar na terra da encantaria. A própria ópera Catirina, que tem o tambor de crioula, é um encanto. O Brasil é muito rico, muito fecundo, sua cultura popular é vasta, mas não conheço muitos pares que cheguem ao impacto sensual que o tambor de crioula realizou na minha mente.

Alcione então é o elo dessa viagem?

Fiz algumas letras para a Maria Bethânia. Somos amigos, cúmplices em tantas ações, já dirigi shows e compus algumas letras que viraram títulos de discos dela, como Anjo exterminado, Mel, Talismã, Alteza, Memória da pele e Olho d’água. Pois é. Então fiz uma letra, que está no disco Álibi, chamada A voz de uma pessoa vitoriosa, para a interpretação de Bethânia. Mas na verdade foi o seguinte: eu tinha ido com Caetano, Dedé [ex-mulher de Caetano], minha mulher Marta e a Bethânia assistir a um show da Alcione num espaço do Rio chamado Teatro da Galeria. Aí fiquei absolutamente impressionado com o jeito daquela mulher narrar as suas peripécias na vida de boates e inferninhos do Rio, como cantora da noite, como crooner. E nada repassava amargura, derrota ou fracasso. Ela contava histórias que estava cansada, exausta, aí de repente chegava um fazendeiro mineiro e colocava sobre o piano uma quantidade de dinheiro e falava assim:


- Quero que você cante tal música.

Daí ela puxava uma energia, não sabia de onde, quem sabe de um tanque de reserva que o artista sempre tem de ter. Então, o que passava daquela história de cantora da noite não era exaustão nem cansaço. Era a Alcione como representante da voz de uma pessoa vitoriosa. Ela mostrava uma batalha e o alcance de uma meta, uma vitória que espalhava um lençol de alegria, de realização e de prazer.

Então, nós saímos depois e fomos para um restaurante. Lá, conversando com as pessoas da mesa, Maria Bethânia me ouvia falando a respeito do show e me disse:

- Waly, queria que você escrevesse isso, que você fizesse uma poesia para eu por no meu disco.

Aí eu falei:

- Sim, mas quem vai musicar?

Como Caetano estava do lado, ela o apontou. E Caetano topou. Fui pra casa e fiz a letra, que começa assim: “Sua cuca batuca/ Eterno zigue-zague/ Entre a escuridão e a claridade/ Coração arrebenta/ Entretanto o canto aguenta/ Brilhar no tempo a voz vitoriosa... [Waly canta a música toda]. Só consigo lembrar dos versos cantando. Com o tempo eles somem da memória. A música tem esse poder de memorização, como a rima também tem para a poesia. Daí surgiu a gênese da minha relação com a Marrom.

Você tem uma relação muito próxima com Maria Bethânia.

Eu contei essa história da nossa amizade num telão do show da Alcione no bar Asa Branca, no Rio. Assim é com a Bethânia, alma gêmea da Marrom, que também é minha grande amiga. Agora, mais uma vez nos encontramos no aniversário dos 50 anos da Maria Bethânia. Ela convidou pouquíssimas pessoas, entre elas eu e Alcione. Bethânia é seguramente seletiva. Ela está certa. Tem aquele modo extraordinário de escolher as suas afinidades. Escolhe bem quem ela quer amar.

Fomos a Salvador e nos encontramos no mesmo hotel. Quando entrei nos jardins do hotel, Alcione começou a cantar para mim A voz de uma pessoa vitoriosa. Aí fomos todos juntos, eu, Alcione, Bethânia..., no ônibus de Salvador pra Santo Amaro. E Alcione, com todo o humor que lhe é peculiar – aliás, uma qualidade bem popular daqui de São Luís, eu percebo - ia narrando o trajeto todo como uma guia turística falando em espanhol e brincando com todos os campos de cana-de-açúcar do Recôncavo Baiano, como se fossem jardins ou o quintal da casa de Maria Bethânia. Chegamos lá e a festa foi maravilhosa. No meio da festa, entre goles de whisky, falei o seguinte:

- Alcione, se você tivesse juízo andaria muito mais perto de minha aura.

Disse isso brincando, no meio do entusiasmo da noite, da festa, da bebida. Entusiasmo, no sentido etimológico, é quando a gente está mais próximo dos deuses. Ou seja, minha vontade conseguiu falar dessa forma para ela. E esqueci até dessa frase. Dias depois, a Alcione telefona me convidando para vir a São Luís. E aqui ela repetiu essa frase - quase morri de vergonha! - e me disse:

- Agora não largo mais do seu pé, seu Salomão! Você me disse isso, então resolvi tomar juízo.

Como se deu esse renascimento de Vapor barato, a sua música mais expressiva?

Vapor barato ressurgiu como uma fênix das cinzas. A letra nasceu em 1971 num show que concebi e dirigi para Gal Costa. O título do show surgiu de um texto meu, do meu primeiro livro chamado Me segura que eu vou dar um troço, que tinha o nome de Fa-tal (assim mesmo, com hífen). Nesse show, que deu origem ao disco de mesmo nome, descobri Luiz Melodia para o Brasil, por meio da música Pérola negra. Luiz era meu amigo do morro de São Carlos e o apresentei a Gal. E desse show, o momento central - a primeira parte era com Gal, banquinho e violão, e a segunda tinha uma adaptação mais pesada - era exatamente Vapor barato, que fazia a transição da primeira para a segunda parte. Na música, Gal começava só com voz e violão e depois ia entrando a banda, quando começava a segunda parte do show.

Vapor barato transformou-se rapidamente em hino hippie, um hino underground brasileiro. Em todos os lugares, as pessoas tocavam violão nas diferentes comunidades hippies do Brasil, e Vapor barato (a letra é minha e a música, do Jards Macalé) virou a senha daquela geração. No ano passado, durante as filmagens de Terra estrangeira, o diretor Walter Salles Júnior precisava de uma música para a trilha do filme e perguntou para Fernanda Torres:

- Você tem alguma música que sintetize a sua vida?

Por sorte, a Fernanda estava com um fone de ouvido escutando Vapor barato. Ela relata essa história em fax que mandou pra mim e para o Macalé. Por isso estou transmitindo para você e seus leitores. Então, Fernanda tirou o fone do ouvido e disse:

- Se eu tenho uma música na minha vida?

E ela perguntou isso três vezes.

- Claro que eu tenho. É Vapor barato - respondeu.

Mesmo sendo de uma geração mais nova, Fernanda disse que essa é a música-síntese de sua vida. Nenhuma música é mais representativa das agruras, das angústias, das ansiedades e da vontade de propulsão de ir adiante do que Vapor barato.

E para completar, agora em julho a gravadora - e gravadora é fria, não tem comoções; é um olho mercadológico só - de Gal Costa está relançando Fa-tal em CD. E também este mês um grupo maravilhoso, que sou muito ligado, O Rappa, está lançando um disco que tem uma releitura de Vapor barato. É um grupo engajado de reggae, uma nova geração, formado por gente da Zona Norte, Baixada e subúrbios do Rio. O disco sai no dia 20 de julho e vai se chamar Rappa mundi, com a produção do fera do reggae Liminha.

São Luís é a capital brasileira do reggae. Você também tem uma relação afetiva com o reggae?

Acho que fui um dos primeiros brasileiros a se interessar e ficar apaixonado pelo reggae. Eu morava em Nova Iorque, em 1975, quando fui com o Arto Lindsay assistir a um show de Bob Marley. Fiquei fascinado e comecei a ouvir todos os seus discos. Quando retornei ao Brasil, em setembro de 1975, fiz uma letra intitulada Negra melodia (Soul train domingueira era o subtítulo), musicada e gravada pelo meu parceiro Jards Macalé. Era uma homenagem explícita ao Bob Marley. Inclusive tinha até duas ou três frases em inglês retiradas de músicas de Bob Marley.

Depois a música foi regravada por Itamar Assunção. Uma década depois, quando o reggae já imperava em Salvador, Margareth Menezes também gravou Negra melodia, um dos grandes hits de sua carreira.

Você está no epicentro da cena cultural brasileira, como poeta, letrista, produtor e agitador. Caetano Veloso, por exemplo, é um dos seus mais próximos parceiros...

Caetano musicou todas as minhas letras feitas para Bethânia. Também organizei o livro de Caetano, Alegria, alegria, reunindo artigos dispersos no Pasquim e em diferentes órgãos de imprensa. Fiz uma espécie de caetanave textual. Na Navilouca, que organizei com o Torquato Neto, tinha também textos de Caetano. Então, nós temos relação de amizade e de parceria. Com Gilberto Gil fiz muitas letras também. Na trilha sonora do filme Quilombo, de Cacá Diegues, Gil fez todas as músicas e todos os efeitos sonoros, e as letras foram feitas por mim. Com Lulu Santos, fiz o reggae Assaltaram a gramática, gravado pelo Paralamas. Fiz para um filme da Ana Maria Magalhães sobre poetas, do qual participávamos eu, Paulo Leminski, Chacal, Chico Alvim... Adriana Calcanhoto agora pegou um poema do meu livro Algaravias, musicou e acabou sendo título do seu último disco, A fábrica do poema. Sou um bom padrinho, pelo jeito. Dou sorte, sou o anti-pé-frio.

Há outras parcerias importantes?

Passei um período em Salvador dirigindo a Fundação Gregório de Matos e depois trabalhei com Gil na campanha para vereador da capital baiana. Quando voltei ao Rio, fui convidado pela Gal para coordenar seu novo trabalho. Dirigi então o show Plural, dei o nome, concebi, escolhi o repertório e indiquei mudanças. Introduzi no repertório Arnaldo Antunes, Cabelo, e pus novos ingredientes na massa sonora da Gal Costa. Depois João Bosco me propôs fazermos um disco juntos. Aí começou uma parceria entre eu, João Bosco e Antônio Cícero, que resultou no disco Zona de fronteira. Todas as letras são minhas e do Antônio Cícero. As músicas são do João e apenas a letra de Memória da pele é somente minha.

Você já conhecia algumas coisas da cultura do Maranhão.

Lembro-me que Maria Bethânia, aos 18 anos, estourou nacionalmente com uma canção do grande épico maranhense João do Vale, que foi Carcará. Essa música transformou-se rapidamente numa canção antológica, uma espécie de emblema rubro da canção popular numa época cinzenta.

Com Alcione, então, há uma relação de identidade?

São tantas as coisas que me identificam com Alcione... Fiquei vendo o jeito que ela movimenta-me por entre o povo, o povo simples, todos encostando e tratando-a como alguém que se projetou, mas que é da tribo... E que você pode encostar a qualquer momento e abraçar. Gosto tanto dessa atitude. Alcione tem isso em comum com Maria Bethânia. Quanto mais você se aproxima do universo das duas, mais você se fascina e se encanta com as tiradas, os repentes, a agilidade mental, a fala cotidiana, as frases regionais... como têm o Maranhão e a Mangueira. Sou muito ligado à Mangueira também. É a escola do meu coração, sou verde-e-rosa total há anos e anos. Então, até isso nos une. E agora essa minha atração pelo Maranhão...

Acho Alcione uma das cantoras mais sofisticadas que conheço. Essa mulher tem uma garganta impressionante. Ela é a sophisticated lady, a musa sofisticada, o anjo sofisticado da música não só do Rio ou do Maranhão, mas de todo o Brasil. Quantos nomes de compositores ela já revelou? Então, é uma pessoa que tem sempre um olho não só para o já estabelecido, mas para o novo, o diferente, o ainda não revelado.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A pauta mora ao lado

O texto anterior é fruto desse feeling jornalístico que insiste em me atormentar a qualquer hora. Quem é do ramo sabe do que estou falando. Quando se é jornalista (ou pelo menos quando se era jornalista, no tempo em que o diploma ainda valia alguma coisa), um assunto aparentemente corriqueiro pode se transformar numa boa pauta. No final, tudo vai virar texto. Jornalista é um eteno filho da pauta. Foi assim. Mudei de casa e, no novo endereço, esbarrei com um vizinho chamado Cury. Daí vieram as primeiras conversas.

E, claro, lá estava a bendita pauta na cabeça. Aquilo que parecia ser apenas uma conversa de vizinho acabava virando uma entrevista. E tome pergunta. A cada encontro eu colecionava uma curiosidade. Depois resolvi juntar tudo e arrematei o texto trocando umas últimas palavras com o vizinho ilustre.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

30 anos de Aparências, a música que Roberto Carlos não gravou

Nos 50 anos de música do rei Roberto Carlos, comemorados este ano, há pelo menos um capítulo protagonizado por um maranhense. José de Ribamar Cury Heluy, ou simplesmente Cury, era um jovem bancário que morava em Ipanema, no Rio, e vivia enturmado com artistas em início de carreira. Havia deixado São Luís no começo da década de 1960, aos 16 anos, e pouco tempo depois conseguira aprovação em concurso público do Banco Central. O endereço de Cury, na rua Nascimento Silva, era freqüentado por Raul Seixas, Cassiano, Odair José, Evaldo Braga, Jerry Adriani, Serguei, Márcio Greyck e Gerson King Combo, entre outros. Na convivência com o mundo da música, virou produtor e compositor. E foi por intermédio de Gerson Combo - um dos precursores do soul e da black music carioca - que numa manhã de março de 1973 Cury entrou no apartamento de Roberto Carlos, então casado com Cleonice Rossi, a Nice. Dali sairia, seis anos depois, a música Aparências, de Cury e Ed Wilson, composta especialmente para a voz de Roberto Carlos.

Cury estava em fase de produção de um compacto simples (a bolachinha em vinil que freqüentou toca-discos até o surgimento do CD) de Gerson Combo, irmão de Getúlio Côrtes, um dos compositores mais presentes nos discos de Roberto Carlos (autor do clássico Negro gato). O compacto viria com uma música de Cury, Me dá mais um cigarro, e uma inédita de Roberto Carlos, à escolha de Combo. Coube ao produtor a missão de ir ao encontro de Roberto, em São Paulo, para escolher a canção que melhor se adequasse ao perfil do disco.

Em 1973, Roberto Carlos já cultivava a nobreza no panteão da música popular brasileira. Fazia shows para grandes públicos, estrelava filmes, cantava em programas de TV e encantava fãs país afora. Ao chegar ao apartamento nas proximidades da rua Augusta, Cury era apenas um garoto de 26 anos diante da majestade. E precisou esconder a emoção quando, com muita naturalidade, Roberto pegou um violão no canto da sala e ali mesmo começou a tocar e cantar algumas composições inéditas. Cury escolheu Quando a cidade acorda, de Roberto e Erasmo, para o compacto de Gerson Combo. Do apartamento simples, de onde luziam gestos educados e traços finos de Nice, Roberto levou Cury para um passeio de carro pelas ruas de São Paulo.




Do que viu e ouviu naquela viagem, Cury, comedido, pouco fala. Mas já havia o comentário no meio artístico de que, àquela altura, não ia muito bem o primeiro casamento de Roberto Carlos. É provável que Cury tenha visto muito além das cortinas e parapeitos, a ponto do mosaico de cenas daquele dia inspirar-lhe versos que marcariam por décadas o cancioneiro romântico: “Quantas noites nós deitamos lado a lado/ Tão somente pra dormir/ Quantas frases foram ditas com palavras/ Desgastadas pelo tempo/ Por não ter o que dizer”.

A união com Nice ocorreu em 1968, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Um ano mais velha que Roberto, Nice era desquitada (numa época em que não havia divórcio) e mãe de uma filha, Ana Paula, de 3 anos. Com Roberto, Nice teve mais dois filhos: Roberto Carlos II, o Segundinho, e Luciana. O casamento em frangalhos durou até 1979. E foi em 1979, com a separação já oficializada, que Cury enviou Aparências para Roberto Carlos gravar. A fita seguiu do Rio com um bilhete emocionado de Othon Russo, então diretor de relações públicas da poderosa CBS, recomendando a gravação a Roberto. O rei não deu respostas e nunca gravou a música.

Roberto Carlos não dava pistas da crise no relacionamento com Nice. Mas algumas canções do período falavam mais que as atitudes em público. Os primeiros sinais vieram em Sua estupidez, um ano depois do início da relação: “Meu bem/ Sua incompreensão já é demais/ Nunca vi alguém tão incapaz/ De compreender/ Que o meu amor é bem maior que tudo/ Que existe”. Em Fera ferida, o rompimento é anunciado em voz alta: “Acabei com tudo/ Escapei com vida/ Tive as roupas e os sonhos/ Rasgados na minha saída...”. Foi naquele vácuo, quando viu que o caso realmente não tinha solução, que Cury sacou da algibeira Aparências e a enviou para um Roberto ainda fragilizado.

Ter uma canção gravada por Roberto Carlos era o sonho de todo compositor. Cury também sonhava. Não houve recusa, mas ficou a impressão no ar de que, na primeira versão de Aparências, sem um final feliz, o refrão soava como um réquiem à desilusão do rei: “Aparências, nada mais/ Sustentaram nossas vidas/ Que de tanto mal vividas/ Já não têm uma esperança de poder viver/ E sempre alimentados de mentiras/ Verdade apenas uma se aprendeu/ É que não há nenhuma chance de juntar/ Você, o amor e eu”. Roberto não deu ouvidos.

Por dois anos Cury ainda tentou outros cantores para a canção-tributo à crise amorosa de Roberto Carlos, como Ronnie Von e Maria Bethânia. Somente em 1981 Márcio Greyck gravaria Aparências. Não sem antes precisar fazer contorcionismo num problema surgido dentro do estúdio, no momento de pôr a voz: emocionado com o arranjo do produtor, o maestro Eduardo Lajes (atual arranjador e regente de Roberto Carlos), Marcio só então percebeu a dureza dos versos finais, e por mais que tentasse não conseguiria dar uma interpretação convincente. Por telefone, pediu a Cury que “aliviasse” um pouco no desfecho da história, “quem sabe uma ponta de esperança” no refrão. O compositor cedeu à sugestão e pôs um pouco de açúcar na sopa musicada por Ed Wilson (um dos ícones da Jovem Guarda), e o trecho da música então ficou assim: “Aparências, nada mais/ Sustentaram nossas vidas/ Que apesar de mal vividas/ Têm ainda uma esperança de poder viver/ Quem sabe rebuscando essas mentiras/ E vendo onde a verdade se escondeu/ Se encontre ainda alguma chance de juntar/ Você, o amor e eu”.

Deu certo. Aparências estourou na voz de Márcio Greyck. Virou hit nas principais rádios do País e foi considerada a melhor música do ano pelo sistema Globo de rádio e TV. Márcio Greyck bateu ponto por muitos sábados interpretando Aparências, para delírio de mocinhas apaixonadas na plateia do programa do Chacrinha. No Fantástico, também da TV Globo, o clipe de Aparências foi apresentado como “a música que Roberto Carlos não gravou”.

Na época, Othon Russo contou a alguns amigos que, depois de assistir ao videoclipe de Márcio Greyck no Fantástico, Roberto Carlos perguntou a razão de a gravadora não lhe ter enviado a música. Claro que Russo informou ao rei todo o percurso de Aparências, da fita enviada a São Paulo à gravação definitiva do compacto que ganharia o Disco de Ouro.

Aparências, depois gravada em espanhol e tocada em países como Espanha e Portugal, abriu caminhos para uma breve carreira internacional de Márcio Greyck. As regravações vieram depois nas vozes de Fafá de Belém, Trio Irakitan, Adilson Ramos, Wilson e Soraya (sertaneja), Belchior (em reggae), Altemar Dutra, Verônica Castro (atriz mexicana), o grupo maranhense Vamu de Samba, e pela orquestra de Ray Conniff, nos Estados Unidos.

Curioso é que Roberto Carlos não incluiu até hoje Aparências em seu repertório, mas bebeu quase na mesma fonte ao gravar Vivendo por viver, de Márcio Greyck. Mesmo à distância do mundo do sucesso, Cury ainda sonha. “Claro que ficaria muito feliz com uma gravação de Roberto Carlos”. São mais de 100 músicas de Cury (algumas em parceria com outros compositores) já gravadas por Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani, Sidney Magal, Agnaldo Rayol, Agnaldo Timóteo, Antônio Marcos, Wanderléa, Jane Duboc, Luiz Ayrão, Adriana, Kátia, Peninha e Alcione. “Todas as canções românticas foram idealizadas para a voz de Roberto Carlos. Eu esperava sair o disco anual do Roberto, e só então mostrava as músicas para outros intérpretes”, conta o compositor. Roberto, segundo Cury, é o artesão da música que melhor cai no gosto do brasileiro. “Não tenho a menor ideia de como seria hoje a música no Brasil se não tivesse existido Roberto Carlos”, frisa.

Roberto Carlos não gravou Aparências, como também não gravou música de outro maranhense composta especialmente para ele. No livro Roberto Carlos em detalhes, lançado em 2006 e proibido de circular por ordem judicial a pedido do rei por “invasão de privacidade”, o autor Paulo Cesar de Araújo relata que, no final da década de 1960, Cláudio Fontana (autor, dentre outras canções, de Menina de tranças e São Luís Ilha do Amor) compôs Estou amando uma menina de cor para a voz de Roberto. A letra falava de preconceito racial, da dificuldade de um rapaz branco se relacionar com uma garota negra. O tema, claro, era tabu. Fontana mostrou a música a Roberto. O rei gostou, mas não topou. “Claudinho, a música é boa, mas fala de um tema muito delicado e que eu não gostaria de abordar neste momento”, teria dito Roberto ao maranhense. Segundo Araújo, nenhum outro cantor da época quis gravar a canção. O próprio Cláudio Fontana a incluiu em seu disco lançado em 1969.

Marisa Monte e esse tal de Cury

Em verdade, José de Ribamar Cury Heluy nasceu em Teresina, durante uma visita que a mãe dele, então residente em São Luís e casada com um maranhense, fez a parentes piauienses. Neto de libaneses, foi criado nas ruas do Centro de São Luís e estudou na Escola Modelo e Marista. Continuou os estudos no Rio e entrou para a faculdade de Administração na UFRJ. Ingressou no Banco Central em 1967 e trocou o curso pela música. Fez carreira bancária como inspetor de câmbio das companhias aéreas estrangeiras até se aposentar, em 1996.

Foi o radialista Luiz de Carvalho, da Rádio Tupi, que entronizou Cury ao mundo da música. Carvalho e Cury eram vizinhos na rua Nascimento Silva. Nas visitas à rádio, Cury conheceu o assistente de som Cidinho Cambalhota. Os primeiros artistas que passaram a freqüentar as noitadas musicais no apartamento de Cury foram levados por Cidinho. Cassiano ainda fazia parte dos Diagonais. Raul Seixas era o líder do Rauzito e os Panteras. A dupla Leno e Lilian já fazia sucesso com Pobre menina e Devolva-me. E Jerry Adriani conseguia a gravadora para o primeiro disco de Raul Seixas.

Naquela interminável atmosfera de sarau, Cury ficou brincando de compor até gravar a primeira música. Em parceria com Carleba, baterista dos Panteras (o grupo do Raulzito), fez a letra para Viu, gravada por Adriana em 1968 em disco lançado pelo selo Equipe, de Osvaldo Cadaxo. A razão social da gravadora era Equipe Utilidades Domésticas, uma empresa criada a princípio para vender utensílios de cozinha, mas que logo abandonou essa atividade e acabou se tornando o primeiro selo independente de grande sucesso no Brasil. Viu caiu nas graças das rádios, o que se refletiu na grande quantidade de discos vendidos. Um feito para a época. Antes de Viu, Adriana fez sucesso com Anjo azul, música do também maranhense Nonato Buzar que deu título ao disco da cantora. No ano seguinte, Márcio Greyck gravou Que seria de mim sem você, outra parceria de Cury e Carleba.

Cury foi se dedicando ao violão e passou a compor sozinho. Em 1970 ele cria O que me importa, a pedido de Wanderléa, que “precisava” de uma música romântica forte para carro-chefe de um compacto simples da CBS. Ela ouviu e ficou encantada, mas o diretor da gravadora preferiu uma música de Don e Ravel. O compacto de Wanderléa não fez tanto sucesso, e logo depois ela trocou de gravadora. Dois anos depois, O que me importa entra no compacto duplo de Adriana, disco produzido por Cury para a gravadora Odeon (hoje EMI).

Uma semana antes de gravar O que me importa com Adriana, Cury recebeu um telefonema de um cara se identificando como Tim Maia. Disse que estava telefonando da casa de Adriana e que naquele momento queria conhecer o autor da música. Cury achou que era trote e desligou. Adriana ligou em seguida e confirmou a história. Na casa de Adriana, Tim Maia disse que também queria gravar a música, mas iria esperar. – Não quero prejudicar a Adriana. Primeiro ela grava, e você vai ganhar o prêmio de melhor música. E aí então eu gravarei – teria dito Tim Maia a Cury. A música, gravada com o acompanhamento de uma orquestra e o coro dos Diagonais, estourou em todas as rádios e, confirmando a profecia de Tim Maia, no final de 1972 ganhou o prêmio de melhor música do sistema Globo de rádio e TV.

Em fevereiro de 1973, Tim Maia finalmente gravou O que me importa em disco lançado pela Polydor. Embora no estúdio houvesse um produtor indicado pela gravadora, o cantor solicitou a Cury que o produzisse e orientasse na gravação dessa faixa, com relação a arranjo e interpretação. Cury pediu-lhe que fizesse um arranjo simples, e que não soltasse o vozeirão, como fazia normalmente.

Tim havia sido abandonado por uma namorada e viu sua história de amor depurada na letra da música. “O que me importa/ Essa tristeza em seu olhar/ Se o meu olhar/ Tem mais tristezas pra chorar/ Que o seu”. A versão de Tim Maia é primorosa. Cury e Tim Maia ficaram amigos. O compositor ajudou a pavimentar o caminho que deu origem à gravadora Vitória Régia e à editora Seroma (iniciais de Sebastião Rodrigues de Maia). Incentivou Tim Maia a comprar o primeiro apartamento, na rua Figueiredo de Magalhães, em Copacabana. A amizade fraquejou e pouco tempo depois Tim Maia entrou para a seita Universo em Desencanto (chegou a gravar dois LPs sobre o tema).

O que me importa ganhou versões também do Ira! e Renato Braz (esta com arranjo e violão de Dori Caymmi). Mas em 200
0 veio a consagração. Marisa Monte incluiu a
canção no CD Memórias, crônicas e declarações de amor, que vendeu quase dois milhões de cópias. A regravação rendeu um encontro entre Marisa Monte e Cury no Parque Lage (foto), no Rio, promovido pelo jornal O Globo. Os dois trocaram figurinhas, descobriram afinidades e revisitaram a história da música brasileira. “Foi um encontro maravilhoso, de descoberta mútua”, conta Cury. Havia uma curiosidade no ar. Marisa Monte queria conhecer o autor daquela música tão densa gravada anteriormente por Tim Maia.

Em 2007, O que me importa foi gravado na Itália pela diva Ornella Vanoni, aos 73 anos, com participação especial de Mario Biondi, cantor italiano de pop/jazz, que interpreta uma parte da música em português.

A composição Quem é você, gravada duas vezes por Alcione (em 1986, pela BMG, e em 1996, pela Universal) também teve momentos de glória para Cury. A versão em espanhol Quien es usted, na voz de Sandra Mihanovich, ficou por quase um ano no topo das paradas de sucesso na Argentina.

Mas o direito autoral não conseguiu irrigar por completo os planos de Cury. Poucos compositores no Brasil conseguem manter uma receita regular fruto do direito pela criação da música. O que sobra, no redemoinho das arrecadações, é a fração da fração de uma conta que inclui o intérprete, os músicos (direitos conexos), a editora, a gravadora, o ECAD, o parceiro de autoria (quando há mais de um compositor na música) e os impostos. Michael Sullivan, por exemplo, compôs música para meio mundo de cantores e bandas nos últimos 25 anos, de Tim Maia a Xuxa, da Banda Calypso a Carlinhos Brown, de Nelson Gonçalves a Ivete Sangalo. Criação de música em linha de montagem. Não por acaso, o compositor e produtor Sullivan (na maioria das vezes ao lado do parceiro Paulo Massadas) acumula a incrível marca de 50 discos de diamante, 270 de platina e 550 de ouro. Uma façanha, sem dúvida.

Parte de uma indenização que recebeu do Banco Central, em 1999, Cury investiu na montagem de um estúdio de gravação, na casa onde morava, no Recreio dos Bandeirantes, no Rio. Os atrativos: a mesa inglesa Amek Hendrix, de 40 canais, que adquiriu da Som Livre, e a bateria Premier Signia Plus, com quatro tons e um surdo, criação especial do baterista do grupo Iron Maiden. Pelo estúdio passaram alguns nomes importantes da música, como Claudio Zoli, Frejat, Marcos Valle, Erasmo Carlos, Zé Ramalho, Fagner, Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Alcione.

Mas em 2003 Cury decidiu voltar para São Luís. Manteve o estúdio em atividade ainda por dois anos enquanto tentava viabilizar projeto de festivais de música e integração de artistas maranhenses com nomes da região centro-sul do País. Obstinado, Cury ainda sonha com outro destino para a música do Maranhão. Com mil ideias na cabeça e alguns projetos debaixo do braço (tem aprovado um projeto pelo Ministério da Cultura), qual um Quixote do trópico timbira, Cury corre atrás de mecenas para materializar os seus planos.

Aparências
(Cury e Ed Wilson)

Quantos anos já vividos, revividos,
Simplesmente por viver
Quantos erros cometidos tantas vezes,
Repetidos por nós dois
Quantas lágrimas sentidas e choradas
Quase sempre às escondidas,
Pra nenhum dos dois saber
Quantas dúvidas deixadas no momento
Pra se resolver depois

Quantas vezes nós fingimos alegria
Sem o coração sorrir
Quantas noites nós deitamos lado a lado
Tão somente pra dormir
Quantas frases foram ditas com palavras
Desgastadas pelo tempo
Por não ter o que dizer
Quantas vezes nós dissemos “eu te amo”
Pra tentar sobreviver

Aparências, nada mais,
Sustentaram nossas vidas
Que apesar de mal vividas têm ainda
Uma esperança de poder viver
Quem sabe rebuscando essas mentiras
E vendo onde a verdade se escondeu
Se encontre ainda alguma chance de juntar
Você, o amor e eu.


O rei por trás das aparências

Em Roberto Carlos, as aparências enganam. Nem tudo é o que parece ser. Nem mesmo quando evoca canções ingênuas ele se entrega. Vai de um ponto a outro do verso buscando uma saída para não se expor por completo. São 50 anos de música, quase cinco décadas de fama. Ou seja, por mais que ele evite, a fama o persegue e o incomoda. Não abre mão da privacidade. Por isso mesmo, as aparências são apenas um trunfo. Não por acaso, ele briga na justiça para que fãs e curiosos não o vejam de corpo inteiro na obra Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar de Araújo. No livro, o rei seminu é apenas uma caricatura. Os detalhes estão nas entrelinhas.

É romântico, amante à moda antiga, meio kitsch, obsessivo-compulsivo (o cara das mil e uma manias) e devoto de Nossa Senhora. Já foi lobo mau, ídolo de gordinhas e mulheres de 40 e deu mais ternura a uma boleia de caminhoneiros insones. Manteve acesa a chama do encantamento de fãs nos lugares mais distantes. Onde há um aparelho de TV, tem sempre alguém ligado no programa do Roberto de final de ano. É um compromisso quase religioso do brasileiro.

Roberto Carlos canta com o coração. É sincero na voz, inconfundível na interpretação. A música dele embala gerações. Sai das paradas, mas não sai de moda. Ainda assim, confunde deliberadamente os mexericos quando vê a sua intimidade acuada. Embora em momentos diferentes, para a mesma Nice que Roberto compôs Fera ferida, dedicou Como é grande o meu amor por você, um escancarado hino à paixão. As canções, em alguns momentos, servem para despistar. Muitas coisas ele encobriu com zelo. Só não evitou que extravasasse o amor sem limites por Maria Rita. Mas quem haveria de calar um amor sem limites?

No baú das trilhas sonoras, não há quem não tenha guardado lá no fundo uma música do rei. Improvável não associar a canção a uma história de amor, ao pai, a uma saudade, a um amigo, à fé, à natureza, a uma relação mais íntima e intensa. Sim, Roberto também é ousado. Nas poucas vezes que abordou o sexo no repertório, desceu ao tema ora dissimulado (Cavalgada) ora de peito aberto (Côncavo e convexo).

Roberto Carlos é a antítese do lema “ame e dê vexame”. Ame e, sob os holofotes, faça de conta – ele é pragmático. Mas o rei é falível, como qualquer um de seus súditos. Vai até aonde pode. “O show já terminou/ Vamos voltar à realidade/ Não precisamos mais/ Usar aquela maquiagem/ Que escondeu de nós/ Uma verdade que insistimos em não ver...”. Com estes versos e vestido de palhaço, certa vez cantou chorando em show cuja data coincidia com o fim do romance com Nice.

Ele pode fazer de conta. Tem lastro para exceder em manias e esquisitices e até para evitar que o mundo leia a sua vida. Mas não tem jeito. Roberto Carlos está além das centenas de canções que já gravou ou cedeu para que outros gravassem, de roqueiros a caipiras. Ele está na TV, nos jornais e revistas e na internet. No rádio também. Em São Luís, Florisvaldo Sousa, com sua voz inconfundível, depois de alguns hiatos voltou a apresentar o programa Clube do Rei, agora na rádio Cidade FM. Vale a pena o bilhete de embarque pelas jovens tardes de domingo.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Voto de confiança

Deu tudo certo. João Vítor passou na prova da primeira leitura na escola. Desceu do medo, enfrentou a platéia de amiguinhos e leu no microfone um texto de mais ou menos quatro linhas. Presumo que, para ele, o problema maior não foi o texto de quatro linhas, mas o microfone e a platéia.

Não quis desmotivá-lo, mas no começo achei o texto meio escorregadio para uma criança de 6 anos. Não é fácil para alguém estrear no palco da leitura com palavras do tipo fitoplâncton, alga microscópica, transformam... Mas ele conseguiu, e a professora ainda ligou elogiando a performance. Leu com desenvoltura.

João Vítor voltou pra casa feliz da vida. Foi bom não ter pressionado. A insegurança do primeiro dia foi vencida pelo incentivo e treinamento. Um voto de confiança que valeu a pena.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O pequeno leitor


Meu filho teria hoje o primeiro teste de leitura na escola. Tremeu na base. Fez um drama e tanto. Chorou com receio da prova oral. Forjou uma dorzinha de cabeça para ficar em casa. Mas não colou. João Vítor tem 6 anos. Teme embaralhar as letras, confundir as palavras e dar vexame na frente dos amigos de sala. Comoveu pai e mãe. Não vale a pena insistir. Fica para amanhã. Ele tem a vida inteira para ler desarmado, sem pressão. Leitura é paixão.

Não é fácil pra ninguém. Meninas naturalmente lêem mais cedo. João Vítor já sabe ler, mas esboça uma preguiça amnésica todas as vezes que é posto à prova em casa. É mais tolerante aos desafios de jogos eletrônicos. As armadilhas do PSP – o venerado play station portátil – ele conhece de cor. Nesse quesito ele não desencoraja.

Leitura é hábito, noutras vezes puro deleite. Vício. O melhor exemplo de leitura para João Vítor está em casa. A manhã mal começa e os pais disputam páginas de jornal no sofá da sala, diariamente. O café sempre fica para depois das notícias do dia. Maria Clara, de 9 anos, é leitora voraz de tudo. Vive à sombra das maravilhas de Alice, a nossa secretária. Lê por prazer. E vai tomando o gostinho de contadora de histórias.

João Vítor e Maria Clara se aprendem. Ambos gostam do cheiro dos livros e das revistas, da tinta que dá forma e sabor às folhas soltas. Um dia vão crescer e olhar pra trás. Por enquanto vêem o presente e sabem muito do amor em família.

A rede e o moinho


Nesta segunda-feira de junho abro parêntese para falar das coisas simples da vida, de banalidades da maior importância, das adoráveis tolices do cotidiano - sempre que houver tempo, claro! Rendo-me de vez ao blog. Aqui será o meu ponto de fuga. Para driblar a velocidade dos ponteiros. Sair de cena para cair na blogosfera. Correr atrás de um compromisso novo para me libertar de agendas renitentes.

Chego despretensioso para acender o paiol de conversas solitárias. Não desejo nada que não seja construir o plano de vôo quando já estiver acima das nuvens. Redemoinho é o texto desgovernado. O moinho da grande rede, a tarrafa no balé sobre as águas, o punho dobrado na rede da varanda.

Um blog para cometer disparates sem perder a fervura. Redemoinho é a escapatória da rotina, do tempo pequeno demais, da cerimônia demais. Do terno e da bravata. É qualquer tentativa de dialogar com alguém que não se conhece. Comigo mesmo talvez. Escrever sem critério e dar bandeira ao acaso. Não preciso mais que isso.


Redemoinho é a água correndo em círculo, na velocidade da brincadeira de palavras, no livre exercício do ludo real e na ciranda de frases perdidas e ingênuas. Viva a rede! Viva a falta de notícia! Escrever de vez em quando é soltar os bichos, deixar correr frouxa a idéia estapafúrdia. Esse é um jogo de dardos experimental para quebrar gelo.